“A 'Carta', Constituição Tradicionalista”
dc.contributor.author | Magalhães, Luís Cipriano Coelho de | |
dc.date.accessioned | 2024-04-19T10:04:02Z | |
dc.date.available | 2024-04-19T10:04:02Z | |
dc.date.issued | 1925-10 | |
dc.description.abstract | Numa reflexão crítica sobre os documentos legislativos que pautaram o decurso do sistema monárquico constitucional em Portugal, o autor alude à soberania imperial e institucional da Inglaterra presentes na nação portuguesa. Se, por um lado, se considera que o modelo liberal adoptado era um produto originário da Inglaterra, considera-se que a revolução de 1820 – que daria origem à primeira Constituição (1822) – foi, essencialmente, uma revolta anti-britânica, precurssionada pela fuga da Família Real para o Brasil aquando das invasões napoleónicas. Porém, o autor questiona, ainda, a alegada interferência inglesa por parte de Sir Charles Stuart (1779-1845) – ministro inglês no Rio de Janeiro responsável por mediar a independência brasileira e por manter as relações de comércio anglo-brasileiras – na elaboração da Carta Constitucional, algo que carece de confirmação. | |
dc.description.authorDate | 1859-1935 | |
dc.format.extent | 11-24 | |
dc.identifier.uri | https://cetapsrepository.letras.up.pt/id/cetaps/114464 | |
dc.language.iso | por | |
dc.publisher | Conselho Director Central das Juventudes Monarchicas Conservadoras | |
dc.publisher | Tipografia da Portugalia | |
dc.publisher.city | Lisboa | |
dc.relation.ispartof | Portugalia | |
dc.relation.ispartofvolume | 1 | |
dc.researcher | Marques, Gonçalo | |
dc.rights | metadata only access | |
dc.source.place | BN J.2314 B | |
dc.subject | Política | |
dc.text | A «Carta», constituição tradicionalista Já nos últimos tempos da Monarchia, sob a influencia da reacção realista franceza, de que Charles Maurras é o systematisador e definidor doutrinário, as gerações académicas portuguezas, rumando para a extrema direita, iniciaram e desenvolveram um obstinado ataque á formula monarchica que, desde 1834, na hora do decisivo triumpho militar da causa liberal, regera sem interrupção o paiz. A Carta Constitucional da Monarchia Portugueza, outhorgada em 29 de Abril de 1826 por D. Pedro iv, tornou-se o objecto das mais violentas e asperas criticas. Ella fôra a predecessora e preparadora da Republica. Eivada do espirito maçonico, desencadeára a perseguição religiosa. Com o suffragio generalísado á grande massa da nação, estabelecera a «soberania de incompetência» e o regimen da «mentira constitucional". Enfraquecera o principio de auctoridade da Monarchia integral, pondo em frente da soberania do Rei a soberania do parlamento. Com o seu critério individualista desorganisara a sociedade portugueza. Com o seu espirito democrático attingira e offendera o caracter da nacionalidade. Fôra um enxerto artificial de ideologias extrangeiras. E, assim, renegára o passado, sdndira as nossas raizes históricas e ferira de morte a nossa tradição politica. Eis, em resumo, segundo essas criticas, os malefícios do «erro liberal», de que a Carta é a culpada e responsavel. Em tudo isto ha, me parece, uma pura illusão derivada d’uma ideia preconcebida e da applicação inadequada de um criterio historico extrangeiro a um caso todo nosso, a um acontecimento politico cuja genese e desenvolvimento tiveram caracteristicas proprias, particulares, marcadamente nacionais. Vamos procurar repôr as coisas na realidade dos factos e das circunstamcias, abstrahindo de todo o sectarismo ideológico e collocando-nos, para as vêr e julgar,, num ponto de vista estrictamente nosso. Vamos ver a historia portugueza com olhos portuguezes e dentro do quadro de sua propria evolução. I Observemos, desde já e como ponto fundamental, que a transformação politica por que Portugal passou no primeiro terço do século XIX não foi um phenomeno esporadico, isolado, que se realisasse fóra do ambiente social da epocha e das linhas da evolução histórica coetanea. Portugal liberalisou-se, constifucionalisou-se, quando toda a Europa e toda a America e, mais tarde, a seu exemplo, o resto do mundo civilisado, na Africa, na Asia, na Oceania, se liberalisaram e constitucionalisaram. Portugal adaptou-se, assim, como tantas outras nações, a um novo modo de ser politico em torno d'elle generalisado, a esse systema de Monarchia representativa que o eminente historiador Ferrero reputa uma das mais engenhosas e equilibradas formas de organisação do poder e diz caracterisar politicamente a civilisação europeia do século xix, em sua opinião «o mais brilhante e feliz» da historia, e o illustre publicista, professor e homem d'Estado italiano Caetano Mosca, antigo adversario da democracia, do governo representativo e do parlamentarismo, aconselha hoje, ao fim de longos annos de vida publica, á mocidade do seu paiz que restaure e conserve preciosamente como o que melhor pode garantir o bom governo dos povos. Não fizemos nós mais, portanto, do que integrarmo-nos, como hoje para tudo se diz, n'uma d'essas continuas e successivas metamorphoses politico-sociaes por que as instaveis sociedades humanas se mostram ineluctavelmente submetidas á eterna lei do movimento que rege o Universo e é, n'elle a essencia da vida. O processus da historia não é o do desenvolvimento absolutamente autonomo e espontaneo de cada povo ou nacionalidade, inteiramente ensimesmados[.] A historia opera por largos cyclos de civilisação, com a hegemonia, dentro de cada cyclo, dos paizes que attingem, primeiro, formas superiores na sua constituição politica e social, na sua cultura, na sua economia, no seu progresso material. D'esta maneira, em cada grande grupo social-historico, dá-se uma interpenetração de elementos civilisadores, - de ideias, de sentimentos, de costumes, de formas estructuraes, de instituições, de moral, de direito, de philosophia, de litteratura, d'arte, de religião mesmo, - que se fundem como n'um cadinho, dando-lhe, apesar dos particularismos individuaes de cada povo associado, uma physionomia geral, que o caracterisa. Mas, n'essa mesma interpenetração, n’essa osmose e endosmose de influencias reciprocas, a acção dirigente dos povos mais fortes, mais cultivados, mais adeantados, faz-se sempre sentir e imprime ao conjuncto amphyctionico, como feição collectiva predominante, as feições que os distinguem e lhes marcam a supremacia. Assim, na antiguidade, á hegemonia philosophica, esthetica, litteraria, politica e militar da Grécia, succedeu a hegemonia de Roma que, com o instincto juridico e politico do génio latino, a sua energia expansiva, a sua tendencia conquistadora, dominou o mundo seu contemporâneo, romanisando-o a tal ponto que ainda hoje, apezar do desmoronamento da sociedade antiga sob a avalanche das invasões barbaras, a civilisação europeia sente, no seu pensamento, na sua cultura, na sua organisação politica, nos seus monumentos jurídicos, a perduravel e indesenraizavel influencia d'esse povo mestre dos povos. Na dvilisação medievica e na moderna, a evolução das ideias dos costumes, das instituições, pode dizer-se que foi, em linhas gerais, parallela nos povos comprehendidos no seu ambito. As hegemonias gerais, succederam-se: a do imperio dos Francos; a do imperio germanico; a do império austro-hispano; a nossa propria, gloriosa embora ephemera, hegemonia, caracterisada pelo imperialismo ultramarino em cuja esteira se lançaram hespanhoes, inglezes, hollandezes e francezes; e, acompanhando todas estas, a hegemonia religiosa do christiamsmo exercida pela Egreja Catholica. Cada uma d'essas influencias trouxe um elemento novo ao modo de ser das nações agrupadas no cyclo da civilisação contemporânea. No fim do século XVIII a hegemonia politica da Inglaterra começou a fazer-se sentir no Continente. A revolução franceza não é a fonte originaria do liberalismo e do governo representativo. Essa fonte é toda ingleza. Liberalismo e governo representativo vieram d’alem-Mancha. A revolução franceza foi apenas a forma por que os effeitos d’essa influencia se fizeram sentir em França. A França não se limitou a copiar, a adoptar as instituições inglezas amoldando-as ao seu caracter e tradições politicas; raciocinou-as, philosophou-as e deu-lhes, assim, formas doutrinarias, privativamente suas. Dos Estados Geraes saíu a Constituinte, da Constituinte a Monarchia representativa. Depois é que estalou a tempestade jacobina e rolou, temerosa, a onda revolucionaria; depois é que se representou, até que Napoleão lhe traçou com a sua espada o epilogo imperial, essa «tragi-comedia do racionalismo politico», cujos actos convulsivos se desenrolaram da epilepsia da Convenção ao sanguinário Terror e do Terror á bambochata corrupta do Directorio. II A transformação liberal, entre nós, teve outro caracter, seguiu outros tramites. A nossa Convenção, que foi o Congresso vintista, mostrou-se incruenta e inocente. Não passou d’um sonho politico de ingenuos ideólogos, embora nobres e sinceros patriotas. Se houve terror, não foi o terror vermelho da revolução; foi, mais tarde, o terror branco da reacção absolutista. 1820, nos seus mais altos propositos, não teve o estricto caracter d’um movimento meramente politico. Foi mais uma coisa. Foi talvez, sobretudo uma revolução patriotica. O que os homens de 20 tiveram, principalmente, em vista foi acabar com esse humiIhante proconsulado inglez, aqui mantido pela prolongada ausência da Familia Real e da côrte no Brazil (injustificavel desde que o perigo napoleonico se dissipara) pela subserviente fraqueza da Regencia e pela sujeição do nosso exercito a um commando extrangeiro. Um simples levantamento das tropas contra esse estado de coisas seria, sob o ponto de vista militar, a rebelião, sob o ponto de vista politico um acto aggressivo contra a nação alliada. Uma transformação politica dentro do regimen, era outra coisa. Deve ter sido especialmente este pensamento que levou o exercito a prounciar-se, cedendo á alliciação dos conspiradores do Synhedrio. E, sem se dar um tiro a revoluçõ consummou-se. Veio, depois, o Congresso Constituinte; foram na peugada da Constituição hespanhola de 1812, heroicamente discutida e votada em Cadiz, sob o bombardeamento da esquadra franceza, pelos representantes d’um povo com o seu terriotorio invadidoe o seu Rei prisioneiro. Da Constituição de 22, toda inspirada n’um radicalismo absolutamente falho de senso pratico, mas respeitadora dos Senhores Reis e da Santa Religião, formulas do conservantismo coevo, - o que se não tem dito! Até de impia e anarchista a acoimaram já… E, todavia, a sua promulgação é do theor seguinte, que talvez de muitos esteja esquecido e da grande maioria seja ignorado: EM NOME DA SANTÍSSIMA E INDIVISÍVEL TRINDADE As Cortes Geraes e Extraordinarias da Nação Portugueza, intimamente convencidas de que as desgraças publicas, que tanto a teem opprimido e ainda opprimem, tiveram a sua origem no desprezo dos direitos do cidadão e no esquecimento das leis fundamentaes da Monarchia, e havendo outrosim considerado que sómente pelo restabelecimento d'essas leis, ampliadas e reformadas, pode conseguir-se a prosperidade da mesmo Nação, e precaver-se que ella não torne a cahir no abysmo, de que a salvou a heróica virtude dos seus filhos, decretão a seguinte Constituição Politica afim de segurar os direitos de cada um, o o bem geral de todos os Portuguezes. Notemos logo esta invocação das leis fundamentaes da Monarchia, em cujo esquecimento filia, em parte, as desgraças publicas - o que representa um remoque ao absolutismo, que deixara de convocar os Estados Geraes, de que, por mais d'uma vez, os povos tinham reclamado o funccionamento regular e periodico. Por seu lado, o acatamento da religião pronuncia-se no art. 19, que enxerta, n'um codigo politico, um mero preceito moral: Todo o Portuguez deve ser justo. Os seus primeiros deveres são venerar a Religião; amar a Patria; defendel-a, etc. E mais expressamente se manifesta no art. 8, pelo qual a censura previa é mantida em matéria religiosa: As Cortes nomearão um Tribunal Especial, para proteger a liberdade de imprensa, e cohibir os delictos resultantes do seu abuso, conforme a disposição dos art. 177 e 189. Quanto, porem, ao abuso, que se pode fazer d'esta liberdade em matéria religiosa, fica salva aos Bispos a censura dos escriptos publicados sobre dogma e moral, e o governo auxiliará os mesmos Bispos, para serem punidos os culpados. Ainda pelo art. 25, que estatue a Religião do Estado, a submissão á Egreja Catholica confirma-se n'uma disposição cuja intolerância briga com o espirito liberalissimo da Constituição, pois não reconhece aos portuguezes o direito de praticarem outro culto: A Religião da Nação Portugueza é a Catholica Apostolica Romana. Permitte-se comtudo aos extrangeiros o exercicio particular dos seus respectivos cultos. Por ultimo e para que o sello da orthodoxia a marque bem, subscreveram essa Constituição quatro prelados, o Arcebispo da Bahia e os Bispos de Beja, Castello Branco e Pará, e ainda o padre oratoriano Antonio Pereira. Esse ensaio liberal, nos seus moldes exageradamente democráticos, foi ephemero. A Villafrancada punha-lhe termo em 1823 e a Monarchia absoluta era reimplantada sob a mão vacillante do bom D. João VI, a quem não faltavam nem intelligencia, nem propositos de bem governar, nem a pratica dos homens, nem mesmo a astúcia indispensável a quem com elles se tem de haver, mas escasseava energia moral para se impôr aos que, em volta de si e na sua própria família, urdiam as mais emmaranhadas intrigas politicas. III Em 1826 morre D. João VI. Constitue-se a Regencia, presidida pela Infanta D. Izabel Maria, e o governo envia ao Brazil uma commissão composta pelo Duque de Lafões, Arcebispo de Lacedemonia e Francisco Eieutherio de Faria e Souza, para communicar a D. Pedro IV, como herdeiro do throno, a morte de seu pae e prestar-lhe as homenagens que, n'essa qualidade, lhe eram devidas. A situação de D. Pedro, n'essa conjunctura, era, sem duvida, embaraçosa e difficilima. Reunir as duas corôas, formando uma monarchia dualista, seria, decerto, a solução que mais lhe devia agradar. Mas como reger simultaneamente duas nações tão distantes e, ao tempo, de demoradas e incertas communicações, e onde, de parte a parte, eram vivos e profundos os resentimentos que o gravíssimo acontecimento, tão proximo ainda, da independência do Brazil entre ellas havia suscitado? Claramente se lhe representavam todos os obstáculos, complicações, collisões de interesses, probabilidades de emulações, conflictos, perigos de perturbação da ordem publica, cá e lá, que tal situação comportava. Deixar o Brazil - era natural que lhe não sorrisse a elle, que lá vivera a maior parte da sua vida e que no episodio de Ypiranga, comprehendendo a fatalidade da corrente separatista, geral em toda a America, o salvára, ao menos, para a soberania e senhorio d'uma dynastia portugueza. Por outro lado, os successos dos últimos annos em Portugal punham em sua frente duas questões de altíssima importância: a questão dynastica e a questão do regimen. Não ignorava o que em torno de seu irmão urdiam, reservadamente apoiados peia propria mãe, certos elementos militares, a nobreza e o clero, ciosos das suas regalias e do seu predomínio ameaçado, e toda a facção absolutista, da qual o turbulento, desenvolto, mas sympathico Infante era o idolo e, ao mesmo tempo, o passivo joguete. E sentia bem que o fermento iberal de 1820 não se esterilisára com a jornada de Villa Franca e levedava fortemente na sociedade portugueza, como em todos os paizes do occidente e centro da Europa. Da ponderação de todas estas circumstancias, brotaram o seu plano e a sua decisão final: não abandonaria o Brazil; abdicaria a corôa de Portugal na filha D. Maria da Gloria, Princeza do Grão-Pará. A questão dynastica, resolvia-a casando a Rainha com o tio. Com ser apenas Rei-consorte, não deixaria D. Miguel de cingir a corôa, nem de intervir, embora indirectamente, nas coisas publicas. A questão do regimen, liquidava-a fazendo, para Portugal, o que fizera para o Brazil: outhorgando-lhe, de motu-proprio, uma Constituição em que, resalvando as prerogativas regias, désse satisfação aos partidários do systema representativo. Já na proclamação da Villafrancada o proprio D. Miguel dizia que o fim do movimento era «libertar o Rei para Sua Magestade, livre, dar uma Constituição aos seus povos, tão alheia do despotismo como da licença». E D. João VI, dissolvido o Congresso, nomeava, por decreto de 18 de Julho de 1823, uma junta presidida por Palmella, então ainda Conde, para preparar o projecto da Carta de Lei Fundamental da Monarchia. N'esse diploma reconhecia o Soberano que a antiga Lei Fundamental da Monarchia não podia corresponder, como outr'ora, plenamente aos seus fins e «não se acommodava ao estado actual da civilisação e forma dos governos representativos estabelecidos na Europa». Estas promessas não se cumpriram; mas mostram bem, por virem de quem vinham, quanto a questão constitucional era uma necessidade impreterível, uma inevitabilidade da politica portugueza e quanta razão tinha D. Pedro IV tratando de resolvel-a sem delongas e por um acto espontaneo do poder real. Pode bem dizer-se que, outhorgando a Carta, o Imperador não fez mais do que honrar a promessa por seu proprio pae e irmão feita ao paiz. Não se pode negar, pois, habilidade e senso politico ao plano de D. Pedro. Foi só inspiração sua? Andariam ahi os conselhos de Sir Charles Stuart, o ministro inglez no Rio, que foi, depois, o portador da Carta para Lisboa? Difficil será, hoje, apural-o, a não ser que, um dia, qualquer nota ou documento, exhumados do pó dos archivos, venham inesperadamente esclarecer esta obscuridade. Mas, fosse de quem fosse a concepção, ella revela uma segura visão das coisas e representa uma solução sagaz e pratica. Não precisamos de mais historia para o fim assignado a este ligeiro trabalho. Toda a rememoração de factos que vimos de fazer, visou apenas a determinar a origem da Carta Constitucional e a reunir elementos para a apreciação rigorosa do seu caracter. Discutir se a Carta fôra outhorgada por quem de direito seria resuscitar inutilmente a tão controvertida questão da legitimidade. Não vale a pena embrenharmo-nos agora em argucias jurídicas, já respondidas e arrumadas, sobre successão regia, desde que os factos demonstram que, á morte de D. João VI, em 1826, ninguém, absolutamente ninguém, contestou, no paiz, a D. Pedro IV a qualidade de legitimo herdeiro da corôa. Não a contestaram os poderes do Estado, pois logo o acclamaram Rei, e a Regencia, constituída á morte de seu pae, mandou-lhe, como já vimos, uma enviatura a prestar-lhe vassalagem. Não a contestou o proprio Infante, que escrevia á Regente e ao Imperador d'Austria, protestando os seus sentimentos de fidelidade ao Soberano e que, depois d'isso, tendo jurado a Carta em Vienna e celebrado, alli, esponsaes com a sobrinha, a jurou de novo em Lisboa, ao assumir as funções de seu Logar Tenente até que ella viesse occupar o trono. A questão da legitimidade só surgiu em 1828, depois de D. Miguel estar senhor do poder e em condições de dar o golpe d'Estado a que os seus partidarios o arrastaram. Era tarde... Dois annos levou ao legitimismo a descobrir esse erro jurídico! A Carta, á data da sua promulgação, foi, pois, considerada, por todos, como um acto legitimo derivado do poder legitimo, um acto soberano emanado da indiscutivel e integral soberania d’um Rei, senhor absoluto de todos os seus direitos magestaticos. IV Posto isto consideremos esse famoso codigo politico para lhe fixar bem o significado e vincar a physionomia do regimen que vinha instituir. Pelo facto da outhorga, a Carta é uma constituição d'aspecto accentuadamente integralista. Basta ler as suas primeiras linhas para verifical-o: «D. Pedro, por Graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves, etc. Faço saber a todos os Meus Subditos Portuguezes, que Sou Servido Decretar. Dar e Mandar jurar pelas Trez Ordens do Estado a Carta Constitucional abaixo transcripta, a qual d'óra em deante regerá estes Meus Reinos e Dominios, e que é do theor seguinte.» Estes termos são inequívocos no seu tom peremptoriamente imperativo. E' o Rei, - e só elle, - quem decreta, quem dá a Constituição, quem a manda jurar pelos Trez Estados. Nenhum outro poder, - nem esses mesmos Estados, nem um congresso constituinte, nem qualquer assembleia politica, - teve a menor interferencia n'essa mutação de regimen. Não foi ella sequer uma concessão a representações que os seus subditos ou as Cortes Geraes lhe houvessem feito. Não. A outhorga da Carta é um acto espontaneo do poder pessoal do Rei, na plena integridade da sua soberania, uma livre decisão da sua vontade pela qual elle dá á Nação um estatuto politico que ao seu espirito se afigurou o mais adequado ao interesse nacional. A Carta não foi mais do que um foral collectivo dado pelo Rei á Nação, concedendo-lhe prerogativas, direitos, immunidades, fóros, como os que, n'uma esphera mais restricta, os Reis da Edade-Media e da Renascença concediam ás cidades e Villas dos seus reinos para sua melhor administração e governança. Já isto é um traço firme do tradicionalismo da Carta. Se, porém, a examinarmos na sua contextura intima, esse caracter resalta n'um' mais poderoso relevo. Na forma por que constituiu a representação nacional, a Carta respeita e mantém a velha organisação social das classes, como ellas se faziam representar nos Estados Gerais: clero, nobreza e povo, - clero e nobreza, com assento por direito proprio e nomeação regia na camara dos pares, o povo, com assento na dos deputados, por meio de eleição. Na camara alta, hereditaria, o ramo da nobreza foi, primitivamente, representado só por titulares: os dois duques, de Cadaval e de Lafões, os marquezes, os condes e os dois viscondes com grandeza: o de Asseca e o de Balsemão. O clero tinha como representantes todos os prelados da metropole. Esta representação correspondia, de facto, á ordem social ainda n'essa época subsistente. Pelos seus vastos dominios territoriaes, — vinculos e mão-morta, — a aristocracia e a clerezia eram senhoras de meio paiz. E, em confronto com este poderio, a limitada importancia do commercio e industria do tempo assim como a mediocridade das fortunas da burguezia consentiam bem que se englobassem na mesma classe as profissões liberaes, os mercadores, os mesteiraes e toda a arraia-meuda. As trez velhas classes eram ainda, na sociedade de então, perfeitas e vivas realidades. O Rei outhorgára, é certo, direitos e garantias aos cidadãos e aos altos corpos politicos. Mas conservava uma intervenção e predomínio decisivo nos trez poderes do Estado: no executivo, de que era o chefe, porque nomeava e demitia livremente os seus ministros (art. 74 § 5.°); no legislativo, porque se reservava o direito de dissolução e de veto (art. 74 § 4.°) o que praticamente o tornava o supremo legislador do paiz, visto que, sem a sua sancção, a lei não era lei e essa sancção era, por aquellas prerogativas, inteiramente livre; no proprio poder judicial, emfim, porque, ahi mesmo, se attribuia o direito de moderar ou annullar as penas (art. 74 §§ 7.º e 8.º). Ultima instancia de todos os poderes do Estado, como acaba de ver-se, o Rei era também irresponsável e até sagrado, e inviolavel a sua pessoa (art. 72). Pela nomeação dos pares do reino, e sem numero fixo (art. 74 § 1.°) elle intervinha indirectamente nas funcções legislativas, pois tinha poder para fazer legisladores. Todo o provimento dos cargos públicos dependia da sua assignatura. Da mesma forma que dissolvia as camaras também as adiava ou convocava extraordinariamente (art. 74 §§ 2° e 4.°). Exercia, alem d'isso, o commando supremo dos exercitos de terra e mar. Nos proprios termos da Carta, elle era, nas suas altas funcções de poder moderador, a chave de toda a organisação politica (art. 71). Foi esta latitude dos poderes reaes que mais levantou contra a Carta a opposição dos elementos avançados do liberalismo, — opposição que logo em 1836 se manifestou com a revolução de Setembro, d'onde sairam as Constituintes de 37 e a Constituição de 38, e, mais tarde, á restauração cartista de 42, originou as longas luctas da patuleia, só terminadas em 51 com a Regeneração. Observemos ainda que, em matéria religiosa, a Carta se reduzia a instituir o Catholicismo como religião do Estado (art. 6) — o que não nos parece demonstrar um espirito de hostilidade á Egreja,— e conservava a intolerante disposição da Constituição de 1822, que só a extrangeiros permittia a pratica d'outros cultos. V Vista assim, á luz dos factos e á face dos textos, a transformação liberal portugueza revela, á nossa analyse, duas correntes bem distinctas e de tendencias oppostas:—uma, na verdade, revolucionaria, radical, avançada, de que foram estadios o vintismo, o setembrismo e a patuleia; outra (a que prevaleceu) conservadora, tradicionalista, integralista mesmo na sua origem, representada pelo cartismo. Essas correntes entrechocaram-se durante longos 32 annos no parlamento, na imprensa, nos campos de batalha de successivas guerras civis. A essa querella doutrinaria, como já atraz ficou dito, poz o ponto final a Regeneração, que, abandonando as estereis luctas de formulas, levou a nossa politica para o campo das realisações praticas e do fomento economico. O Acto Addicional de 1852 e os de 1885 e 1896 alteraram uma ou outra disposição da Carta. A camara dos pares perdeu o seu antigo caracter d’uma assembleia da nobreza. A abolição dos vinculos e a ascenção e preponderancia crescente da burguezia no mundo politico reduziram aquella ás restrictas proporções d'uma cathegoria social meramente honorifica. As classes e os seus fundamentos economicos evolucionaram. Hoje reduzem-se a duas: burguezia e proletariado, os que teem e os que não teem... Mas essas revisões da Carta não a modificaram substancialmente, nem attingiram as faculdades do poder real. Ella manteve o seu caracter conservador e, por seu lado, o Rei continuou a ser inviolavel, sagrado e irresponsavel, a nomear e demittir livremente os seus ministros, a poder dissolver as camaras e pôr o seu veto ás leis por ellas votadas, a moderar as penas, a fazer sentir a sua acção dirigente na vida publica, — a ser, de facto, o mais estável, forte e decisivo poder de toda a politica nacional. E foi isso que salvou o nosso systema representativo d essa degeneração dissolvente que se chama parlamentarismo e que é, não o verdadeiro e normal funccionamento do poder legislativo, mas o seu ascendente desequilibrador, e a sua intromissão excessiva e abusiva na area de acção dos outros poderes do Estado. Entre nós, durante a Monarchia,— embora o contrario se tenha dito e redito,— nunca houve esse parlamentarismo, a não ser no ultimo reinado, quando o Soberano, por um excessivo escrupulo no uso das suas altas attribuições, não quiz exercer aquella que lhe permittia dissolver as camaras. Se algum poder se sobrepoz aos outros, durante a Monarchia constitucional, foi o executivo. A acção politica não se exercia de baixo para cima: exercia-se de cima para baixo. O Rei, nomeando os ministros, constituia governos da sua confiança; os governos, que, em Portugal, paiz de fraca energia representativa, foram sempre o grande eleitor, o grande influente, traziam invariavelmente á camara fortes e seguras maiorias. Quando caíam, nã o era porque essas maiorias os abandonassem, mas porque se gastavam e a Corôa, por os sentir gastos, lhes retirava a confiança. Isto são factos,— e são os factos, não as formulas ou as palavras, que determinam as caracteristicas das coisas. Não me parece, pois, que a nossa mocidade conservadora, a cujas aspirações patrioticas se não deve negar a devida justiça, tenha uma visão exacta e precisa das condições em que se deu a nossa transformação politica do século XIX, - que não foi um facto privativo da nossa historia, mas a nossa inevitavel adaptação a uma nova rerum ordo que se impoz a todo o mundo e se tornou o modo de ser caracteristico da civilisação politica contemporanea. Não me parece tambem que ella interprete com justeza o espirito da Carta, que julgo ter demonstrado representar, pela sua origem, a sua estructura inteiramente dominada pela auctoridade do poder real e a sua representação inicialmente modelada na divisão das classes, então constituitivas da sociedade portugueza, um estatuto nacional integralista e tradicionalista, em opposição ás Constituições de 22 e 38, —essas, sim, eivadas, em materia politica, do espirito revolucionario e do radicalismo democratico. Luiz de Magalhães | |
dc.title | “A 'Carta', Constituição Tradicionalista” | |
dc.type | artigo de imprensa |