“Os irmãos Tharaud”

dc.contributor.authorVasconcelos, Amadeu de
dc.date.accessioned2024-04-19T10:04:01Z
dc.date.available2024-04-19T10:04:01Z
dc.date.issued1922-02-25
dc.description.abstractAo noticiar uma nova edição de Rabat ou les Heures marocaines, da autoria dos franceses Jérôme Tharaud (1874-1953) e Jean Tharaud (1877-1952), seu irmão, o autor inicia uma exposição biográfica que visa citar algumas das suas obras, de entre as quais Dingley, l'illustre écrivain (1902), cuja personagem principal, Dingley, é inspirada no escritor Joseph Rudyard Kipling (1865-1936), prolífico autor e poeta do Império Britânico. No entanto, apesar da erudição e mestria que o autor considera inerentes às obras dos irmão Tharaud, a crítica francesa, na pessoa de Benjamin Crémioux (1888-1944), censura a forma como empregam palavras estrangeiras, nomeadamente inglesas.
dc.description.authorDate1879-1952
dc.description.printing_nameA. Pinto d’Almeida
dc.format.extent5-10
dc.identifier.urihttps://cetapsrepository.letras.up.pt/id/cetaps/114447
dc.language.isopor
dc.publisher.cityPorto
dc.relation.ispartofVida Intelectual de Paris (A)
dc.relation.ispartofvolume1
dc.researcherMarques, Gonçalo
dc.rightsmetadata only access
dc.source.placeBN J. 2687//5 B
dc.subjectLiteratura
dc.textII. Os irmãos Tharaud APARECEU há alguns meses uma nova edição de Rabat ou les Heures marocaines de Jérôme e Jean Tharaud, chamando mais uma vez a atenção da crítica para a arte eminentemente clássica, prodigiosamente simples, medularmente latina dêstes meticulosos obreiros das letras francesas. Os triunfos sucessivos dos insignes escritores que na ordem da prosa são o que Moréas foi na ordem da poesia, isto é, perfeitos, cada vez confirmam mais o juízo que, ha dois anos, a Academia Francesa dêles fazia, concedendo-lhes o seu Grand Prix de Littérature (10.000 fr.). De resto, poucas vezes uma decisão da Academia terá encontrado a unanimidade de aplausos que então se ouviram. É realmente raro que a atribuïção dum prémio tão importante, o mais importante mesmo do ano, provoque no público letrado esta exclamação unânime: «Como é justo!» - que por toda a parte se ouviu. É que realmente na grande falange dos modernos literatos franceses poucos haverá tão medularmente escritores e certamente nenhum que tão meticulosamente trabalhe a prosa francesa. Comparados já por diferentes vezes a Racine, êles lembram, pelo esforço prodigioso de atingir a suprema perfeição da arte na máxima simplicidade, a maneira de trabalhar de Flaubert. É na comparação das diferentes edições das suas obras que se reconhece êste esforço constante de simplicidade e de perfeição. Dingley, por exemplo, a primeira obra que os assinala como grandes escritores, reveste três formas diferentes nos três editores em que sucessivamente apareceu, Péguy, Eugène Pelletan, Émile Paul. Mais do que isso, as diferentes tiragens do segundo Dingley, publicado por Eugène Pelletan, são todas diferentes. Jérôme e Jean Tharaud pertencem a uma velha família de universitários e marinheiros do Limousin. Feitos os primeiros estudos no liceu de Angoulême, os dois irmãos são separados pelas carreiras diferentes a que se destinam. Jérôme (aliás Ernest) prepara a sua entrada para a Escola Normal em Sainte-Barbe, êste célebre colégio parisiense todo aureolado das glórias portuguesas, onde se liga em estreita amizade com Péguy e François Laurentie, dois grandes escritores ceifados pela guerra. Após a agregação, Jérôme Tharaud aceita o lugar de leitor de francês na Universidade de Budapest, o que lhe permite, nos intervalos dos cursos, viver um pouco por aqui e por àlém, Itália, Rússia, Alemanha, România, Bulgária, Sérvia, Turquia, recolhendo, ao fim de quatro anos, a Paris, com uma abundante provisão de imagens de que o seu engenho tão admiràvelmente saberia tirar partido. Jean (aliás Charles) Tharaud, mais novo três anos, entra no Colégio dos Jesuítas da rua Lhomond com o fim de preparar a sua entrada na escola militar de Saint-Cyr, abandona êste projecto e passa pela Faculdade de Direito, pela Sorbonne e pela Escola das Sciências políticas. Quando Jérôme regressa a Paris, Jean prepara a sua entrada para a inspecção das finanças, munido dos três diplomas das Sciências políticas e das duas licenceaturas - direito e filosofia. Mas o destino ordenava outra coisa, bem mais alta que uma cadeira duma Faculdade ou uma repartição de finanças. A amizade contraída com Péguy no multisecular colégio de Sainte-Barbe ia regular o futuro dos irmãos Tharaud. É o momento em que o genial e pobre Péguy funda a sua célebre e pobre e efémera livraria da rua Cujas. No trabalho titanesco que Péguy enceta, simultâneamente autor, editor, tipografo, quando não varredor da sua venda de livros, os irmãos Tharaud são, desde as primeiras horas, os companheiros fiéis dêsse lutador de génio que era Péguy, a maior figura intelectual que a guerra roubou à França. É pois na livraria de Péguy que aparece a primeira produção literária dos irmãos Tharaud, Coltineur débile, um conto imaginativo todo impregnado das ideias anárquicas que dominam o pensamento de então. Os irmãos Tharaud são hoje nacionalistas. Mas a época em que êles iniciaram a sua carreira era a época em que as letras francesas sofriam o embate duma dupla vaga de obscuridade, soprada pelas quiméras do socialismo e pelos exotismos do eslavismo, do ibsenismo e do simbolismo. O Coltineur débile faz parte desta torrente de dissolução literária, devendo ser considerado como uma obra bem pouco francesa, tanto pelo pensamento como pela forma. No entanto Péguy lançava os seus célebres Cahiers de la Quinzaine nos quais aparecia, em Junho de 1900, a Lumière, outra obra onde os irmãos Tharaud se continuam a mostrar bem doentes e bem sufocados pelas brumas do Norte. Nessa altura anunciava-se dêles um certo Orphée en Frioul que felizmente nunca apareceu, pois seria um quadro a completar o seu tríptico de contos simbólicos e decadentes. Em Abril de 1902, os Cahiers publicam Dingley, l'illustre écrivain onde os irmãos Tharaud se nos apresentam inteiramente transformados. Dingley é a sua primeira obra-prima. Com Dingley os irmãos Tharaud conquistam o lugar de grandes escritores; com Dingley revelam-se as suas prodigiosas qualidades narrativas. No Coltineur e na Lumière os irmãos Tharaud quiseram dar-nos obras imaginativas, torcendo assim a sua personalidade, visto que a sua imaginação se recusa a servi-los nos seus desígnios. Quando, porém, êles reconhecem que lutam com o impossível, mudam de rumo, trocam a imaginação pela observação, os sonhos das ideologias pelas imagens recolhidas, e dos factos da história, dos documentos da alta reportagem, das anedotas animadas tiram os materiais dos seus livros. Ei-los então abruptamente guindados às alturas em que pairam os mestres da língua. Quando apareceu Dingley, que é uma espécie de Kipling que os irmãos Tharaud pintam agitando-se na África-do-Sul por ocasião da guerra do Transvaal, Anatole France foi chocado por esta revelação súbita de mestria da língua e apresentou os autores ao seu amigo o livreiro Eugène Pelletan, que em 1900 publicou o segundo Dingley, premiado pela Academia Goncourt. Em 1911, apareceu o terceiro Dingley no livreiro Émile Paul, onde os irmãos Tharaud foram conduzidos por Maurice Barrès. As superiores qualidades reveladas no Dingley nunca mais se desmentiram; antes mais se afirmaram. Desde a Maîtresse servante, a mais remodelada das suas obras, até Quand Israël est roi recém-aparecido, quadro empolgante da tragédia bolchevista na Hungria, passando pela Fête arabe, história patética dum recanto africano assassinado pelo progresso, pela Tragédie de Ravaillac, interpretação sugestiva do mistério que envolve a morte do Henrique IV, pela Bataille à Scutari d'Albanie, reportagem dum episódio das guerras balcânicas, pelo afectuoso e palpitante livro La Vie et la Mort de Déroulède, por L'Ombre de la Croix e Un Royaume de Dieu, admiráveis estudos da alma judaica, por Rabat ou les Heures marocaines, luminosa descrição de Marrocos, resultado literário da mobilização dos irmãos Tharaud no exército marroquino, por Une Relève que ao aparecer, há três anos, alguns consideraram como as primeiras páginas imortais da imensa produção literária da guerra, por Marrakech ou les Seigneurs de l'Atlas, maravilhoso quadro descritivo dos grandes senhores do sul de Marrocos - domina sempre a admirável mestria clássica que fez dos irmãos Tharaud os grandes escritores que todos admiram. Ainda mesmo quando uma crítica um pouco facciosa os pretende diminuir, fá-lo rendendo-lhes homenagens que se prestam só aos grandes mestres da língua. É o caso do estudo crítico que no último número da Nouvelle Revue Française Benjamin Crémieux consagra aos irmãos Tharaud. Para Crémieux o último livro dos irmãos Tharaud Quand Israël est roi é um livro «manqué». O livro que outros críticos exaltaram como a pintura, a traços de fogo, da hedionda ditadura do judeu Bela Kun, é para Crémieux um livro abortado, que peca por um «antisemitismo categórico e universal, particularmente contagioso». Mas, a-pesar-disso, Crémieux não deixa de confessar que «num livro «manqué» como Quand Israël..., tudo - e não somente o estilo - é barresiano: a maneira de apresentar as païsagens, de a elas ligar estados de alma, de isolar pormenores para teorizar a seu propósito, de rechear de recordações pessoais desenvolvimentos de ordem geral, de meter as personagens, tudo até a maneira das exclamações ou de fechar os capitulos». E ainda que Crémieux pretenda, no número dos prosadores contemporâneos, « reservar-lhes um lugar de honra» «entre Gide e Larbaud» - conclusão contra a qual já protestaram diversos críticos - não deixa de assim os tratar: «¿Existe uma só frase mal acabada em toda a sua obra? Seríamos tentados a apostar que não. Milagre dum dom verbal que não é feito nem de abundância, nem de imprevisto, mas duma propriedade exemplar na expressão, dum sentido do epíteto que muito poucos escritores franceses de hoje possuem tão requintado, e sobretudo tão eclético, dum uso apurado das elipses, do emprêgo sàbiamente alternado de todos os modos da elocução, desde o tom da palestra familiar até à austera frieza da historia, até à eloqüência, até ao lirismo. Virtuosidade incomparável, mas que não é isenta de grandes perigos... A sua forma não é um ponto de partida, é uma finalização, a resultante de todas as mais belas tradições nacionais, desde a Pléiade até aos impressionistas do fim do século XIX, passando pelo grande século, pelo de Voltaire e pelo romantismo. Todos os materiais por êles empregados são experimentados; a sua escolha é segura; teem a visão penetrante do lapidário que rejeita toda a pedra duvidosa, um sentido infalível do que se chama no colégio a «boa língua», afastada de toda a afectação e no entanto rebuscada ou mesmo um quási nada preciosa. Amam o arcaïsmo e temem-no; adoram o termo técnico e acautelam-se dêle; gostam dos adjectivos concretos e temperam-nos a todo o momento de adjectivos abstractos ou neutros («un affreux courant d'air»); buscam a pureza do antigo parleure e no entanto não hesitam em guarnecer o seu texto de palavras inglesas, árabes ou hebraicas...» Tais palavras mostram bem quanto a arte superior dos irmãos Tharaud se impõe à crítica mais exigente. Pintores exactos - certamente os mais exactos que hoje existem em França não só da alma e dos costumes judaicos, mas ainda das coisas, das pessoas e do génio do Islam, visto que Loti dá às coisas e à vida aspectos fugidios movendo-se numa atmosfera divinamente melancólica - não se deixam dominar pelos amores do exotismo, pois que em muitas das suas páginas palpita soberanamente a tradição nacional e o amor da terra que lhes foi berço. Apaixonados até à obcessão pelo absoluto da forma, e por isso mesmo remodelando incansàvelmente a sua obra, os irmãos Tharaud conseguiram atingir a suprema elegância do estilo pela realização da extrêma simplicidade. E, comparando as suas diferentes edições, que lições êles não dão aos plumitivos que só sabem escrever amontoando os adjectivos sonoros e rebuscando os dizeres amaneirados. Como êles nos dizem que o que é difícil nas letras é fazer uma prosa fácil, o que é horrivelmente penoso é ser simples. E é por isso mesmo que os pedantes, por mais que os inchem os elogios dos parvos, nunca serão verdadeiros escritores.
dc.title“Os irmãos Tharaud”
dc.typeartigo de imprensa

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