“Émile Boutroux”
dc.contributor.author | Vasconcelos, Amadeu de | |
dc.date.accessioned | 2024-04-19T10:04:01Z | |
dc.date.available | 2024-04-19T10:04:01Z | |
dc.date.issued | 1922-02-25 | |
dc.description.abstract | Recordando a relevância do pensamento e obra do filósofo francês Étienne Émile M. Boutroux (1845-1921) aquando do seu falecimento, o autor elabora uma biografia que reflete o percurso académico e político de Boutroux, onde, numa primeira instância, se relata uma Conferência em Londres, em plena Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O artigo menciona, ainda, os filósofos ingleses John Stuart Mill (1806-1873) e Karl Pearson (1857-1936) – mais conhecido pelos seus desenvolvimentos no ramo da estatística –, para reflectir sobre o passado e presente do pensamento filosófico que se aproximara, como reconhecido pelo autor, da ciência. | |
dc.description.authorDate | 1879-1952 | |
dc.description.printing_name | A. Pinto d’Almeida | |
dc.format.extent | 12-18 | |
dc.identifier.uri | https://cetapsrepository.letras.up.pt/id/cetaps/114451 | |
dc.language.iso | por | |
dc.publisher.city | Porto | |
dc.relation.ispartof | Vida Intelectual de Paris (A) | |
dc.relation.ispartofvolume | 1 | |
dc.researcher | Marques, Gonçalo | |
dc.rights | metadata only access | |
dc.source.place | BN J. 2687//5 B | |
dc.subject | Filosofia | |
dc.text | IV. Émile Boutroux A FRANÇA acaba de perder um dos seus maiores pensadores, o qual exerceu uma grande e salutar influência na marcha do pensamento do mundo moderno. Émile Boutroux, o filósofo ilustre da contingência das leis da natureza, morreu na noite de 21 para 22 de Novembro, depois duma longa doença. A-pesar-de ter já ultrapassado os setenta-e-seis anos, só a doença dos últimos meses o obrigou a renunciar aos seus deveres académicos e às suas ocupações intelectuais, para se refugiar na afeição dos seus. Numerosas são, não só em França, mas no mundo civilizado, as pessoas que serão feridas, nas suas afeições intelectuais, pelo desaparecimento daquele que, pela sua experiência e pelo seu pensamento, lhes formou a mentalidade. Émile Boutroux nasceu em Montrouge, arrabalde parisiense, em Julho de 1845. A sua biografia é simples, a dum infatigável trabalhador que conheceu todas as glórias universitárias e académicas, entrando, perto do fim da vida, na admiração e na glória dos homens. Feitos os estudos preparatórios no liceu parisiense Henrique IV, entrou em 1864 na Escola Normal Superior. Conquistada a agregação de filosofia em 1868, foi enviado em missão de estudo à Alemanha, sendo durante dois anos discípulo de Eduardo Zeller, em Heidelberg. Nomeado professor de filosofia do liceu de Caen, doutora-se em letras, em 1874, com duas teses - De veritatibus æternis apud Cartesiam e Da contingência das leis da natureza -, a segunda das quais marcava o despontar duma nova marcha no pensamento da humanidade. Após o doutoramento, passa a ensinar a filosofia na Faculdade de Letras de Montpellier, passando depois à de Nancy e por fim, em 1877, a Paris, onde, novo ainda, sucede, na Escola Normal, a Alfred Fouillée. Menos de dez anos depois, é encarregado dum curso de história da filosofia alemã, na Faculdade de Letras de Paris. Em 1888, substitue Pierre Janet, na cadeira de filosofia moderna da Sorbonne. E não abandonará mais a Universidade de Paris, de que é o mais brilhante ornamento no quadro dos professores de filosofia, ficando professor honorário após a sua aposentação. Membro da Academia das Sciências Morais e Políticas e da Academia Francesa, nos últimos anos da sua vida e até à sua morte, Boutroux dirigiu a Fondation Thiers, êste remanso estudioso que, ao lado da avenida do Bois de Boulogne, a viúva de Thiers legou à França. Era aí, nessa espécie de seminário scientifico, que Boutroux vivia e presidia, com os seus conselhos, aos trabalhos dos pobres e jóvens eruditos, confiados à sua guarda. Com efeito, a Fondation Thiers não é, nem uma escola de altos estudos, nem um instituto. Para honrar a memória do ilustre homem de Estado, Adolphe Thiers, a sua viúva criou com o nome de Fondation Thiers um verdadeiro asilo de sciência, onde alguns jóvens pobres, que se tenham já revelado pelas suas disposições para trabalhos scientificos, passam três anos, isentos de todas as preocupações da vida material, a aperfeiçoar-se na carreira da erudição, com toda a liberdade na escolha dos seus estudos. Pelas suas alianças de família, Boutroux tinha-se ligado ainda mais à Universidade. Casara com uma filha do Dr. Poincaré, professor da Faculdade de medicina de Nancy, a qual era irmã do ilustre matemático Henri Poincaré. Quando, logo após o rebentar da grande guerra, a Alemanha, pela boca dos seus intelectuais, começou a lançar a injúria e a calúnia sobre o pensamento francês, Boutroux foi um dos que se levantaram com mais intrepidez para refutar as mentiras e repelir o insulto. Este grande velho, cujo pensamento era respeitado e ensinado nas Universidades do mundo inteiro, falou como era imperioso que falasse, nas revistas e em conferências, em França, nos países aliados e neutros. O seu primeiro grito de protesto é um artigo da Revue des deux mondes, de 15 de Outubro de 1914. A Alemanha sentiu-se ferida em pleno peito e respondeu-lhe pela via da Gazeta de Francfort, chamando-lhe «o general em chefe do exército francês da pêna». O ódio mortal que a Alemanha lhe votou, a partir de então, os insultos que lhe dirigiu constituem certamente as mais honrosas homenagens que todos os latinos podem depor sobre a pedra tumular do grande filósofo. E no entanto, nessa primeira resposta, Boutroux, que na sua vida de pensador tinha sido seduzido pelo espírito religioso de Kant, ficava a meio caminho da demonstração das responsabilidades. Querendo mostrar a parte que os mestres do individualismo alemão, país do pangermanismo, tinham nos horrores desencadeados, Boutroux não ousara ultrapassar a balisa de Fichte. Ora, antes de Fichte, o discípulo, houve Kant, o mestre. Sem Kant, Fichte é incompreensível. E sem Fichte, mais incompreensível é ainda o pangermanismo. Queiram ou não queiram os adoradores do grande sacerdote da ética contemporânea, a filiação intelectual do pangermanismo é esta e só esta. Para o negar será preciso proceder préviamente a uma grande e dupla destruïção: rasgar a história e abolir a lógica. Do monstro do pangermanismo ao individualismo de Fichte, e do individualismo de Fichte ao individualismo de Kant e, subindo sempre, do individualismo de Kant ao individualismo de Lutero, a cadeia é contínua. Nessa primeira hora, Boutroux, prêso por motivos religiosos e morais, não ousou passar àlém de Fichte. Esta timidez de pensamento provocou da parte de outro grande pensador, Maurras, um protesto veemente, cheio de lógica convincente, mas injusto. É que Maurras atribuiu a razões políticas o que não passava dum escrúpulo religioso e moral. Na homenagem sentida que Maurras acaba de prestar ao grande filósofo, o profundo dialéctico da Action Française penitencia-se do êrro então cometido. Mas pouco depois, numa conferência feita em Londres, a timidez de Boutroux está curada e a filiação exacta é reconhecida explicitamente. É mais um motivo para redobrar o ódio alemão contra «o general em chefe do exército francês da pêna». Sem falarmos na preciosa colaboração dada a diferentes revistas filosóficas e literárias, Boutroux escreveu uma notável introdução para a História da Filosofia dos gregos de Eduardo Zeller; um prefácio para a Monadologia de Leibnitz, conhecido de todos os estudantes de filosofia; um precioso Pascal, que existe nas bibliotecas de todas as pessoas duma certa cultura; Estudos de história da filosofia; a Ideia de lei natural na sciência e na filosofia contemporâneas; William James, biografia e estudo crítico do célebre filósofo americano de quem fôra hospede durante os meses em que fizera um curso na Universidade de Harward; Sciência e religião; e as teses acima assinaladas. A sua influência, que é imensa no pensamento contemporâneo, reveste dois aspectos: como professor e como filósofo criador de doutrina. Como professor, Boutroux foi acima de tudo um historiador da filosofia. Os seus discípulos, alguns dos quais, como Bergson e Le Roy, ocupam os primeiros lugares no movimento filosófico contemporâneo, recordam com saudade as suas admiráveis lições de historiador da filosofia. É que, ao método abstracto que consiste em estudar as ideias e a sua evolução como se elas se bastassem a si mesmas, Boutroux preferiu um método mais concreto, mas duma aplicação mais difícil, colocando os sistemas no seu lugar no tempo e na história do pensamento universal, dando-lhes a figura e o aspecto dum indivíduo. Por um duplo esforço de adivinhação e de simpatia, Boutroux revivia verdadeiramente as doutrinas que os pensadores de outróra tinham vivido. Por isso, os seus estudos sobre Sócrates, sôbre Aristóteles, sôbre Jacob Boehme, sôbre Leibnitz, sôbre Kant, serão sempre citados como modelos. Muitas gerações de estudantes e de professores dêles estão impregnados e dêles se impregnarão ainda. Mas é principalmente como libertador da razão humana, escravizada às gargalheiras infamantes do que se convencionou chamar «scientismo», - um manipanço a que ainda rende culto a maioria dos intelectuais portugueses - que Boutroux marca uma época nova na marcha do pensamento humano. É mesmo quási certo que a posteridade, ao fazer o balanço das ideias do nosso tempo, dará ao seu nome um relêvo incomparàvelmente superior ao que outorgará a Bergson. Ao despontar o último quartel do século XIX, reinavam certas teorias gerais - elas reinam ainda entre nós, porque em tudo estamos atrasados meio século - que se consideravam definitivas e que dominavam a maior parte dos espíritos. As grandes correntes de pensamento, criadas por Kant, Hegel, Augusto Comte, Stuart Mill, ainda que, por caminhos diferentes, pareciam conduzir ao mesmo fim. A filosofia confundia-se cada vez mais com a sciência. A sciência, por seu lado, aparecia como um encadeamento rigoroso de verdades demonstradas ou de leis descobertas, cuja forma mais perfeita era a sciência matemática. O mundo revelava-se cada dia submetido a um determinismo inevitável, cuja necessidade matemática parecia ser a última e mais justa expressão. Todos os problemas da natureza reduzir-se-iam a simples problemas de mecânica (1). Sem dúvida, de facto, não se tinha ainda chegado a demonstrar a exactidão desta interpretação nova do universo; não se tinha ainda reduzido tudo o que é complexo ao simples; as leis experimentais não se traduziam sempre em fórmulas rigorosas; mas julgava-se que era apenas uma questão de tempo. Os resultados já obtidos, as verificações quotidianas da experiência davam a esta hipótese o valor duma certeza prática. Não se devia pois ligar grande importância ao que parecia ainda contradizer a doutrina. As próprias sciências psicológicas e históricas reduzir-se-iam, mais tarde ou mais cedo, às sciências físicas, como o tinha predito Augusto Comte. Para muitos a biologia não passava já dum simples capítulo da química. Quanto à crença na liberdade, isso não passava duma ilusão popular que lentamente iria desaparecendo. A inspiração artística, os imperativos da moral, as criações do pensamento religioso eram um resto do «estado teológico ou metafísico» ao qual sucederia em breve, nos espíritos mais atrasados, o «estado positivo». Todas estas afirmações gerais constituem um edifício que os intelectuais de então reputam majestoso e eterno. O jóven Boutroux, apenas com vinte-e-nove anos, publica, em 1874, a sua tese Da contingência das leis da Natureza e todo o monumental edifício abre brechas enormes até cair por terra. O que dêle vemos hoje são ruínas, ruínas definitivas, porque sobre elas passou o sôpro possante, não só de Boutroux, mas de Bergson, William James, Henri Poincaré, Pearson, Mack, Duhem, Tannery, Meyerson. Impossível nos é, num artigo tão curto, expor completamente a doutrina filosófica do grande desaparecido, doutrina que domina hoje soberanamente a vida do pensamento. Aqueles a quem isso interessar encontrá-la-hão luminosamente exposta nas três obras que a conteem: De la contingence des lois de la nature (1874); Idée de loi naturelle, dans la science et la philosophie contemporaines (1894); e Science et réligion (1908). Limitar-nos-hemos, pois, a esboçar as suas grandes linhas. Para Boutroux, o que equivale a dizer, para o pensamento contemporâneo, a necessidade, mesmo física, é um engano, e as chamadas leis scientíficas não teem nem o rigor nem a fatalidade que lhes atribuiu o scientismo. O mundo não é submetido a um determinismo fatal e a sciência, em nenhuma das suas manifestações, repousa sôbre a necessidade absoluta. As leis seguem a sorte dos fenómenos cuja economia elas tentam fixar provisòriamente; elas passam e são susceptíveis de modificação. Longe de exprimirem o sêr e a razão última das coisas submetem-se-lhes, desaparecem com elas e contentam-se com a sua descrição. Se os acontecimentos obedecem, primeiramente foram êles que ordenaram. «As leis - assim se exprime o filósofo - são o leito por onde passa a torrente dos factos: cavaram-no êles, embora o sigam.» Se o sêr é contingente, ¿como poderá ser necessário o arranjo das partes do sêr? Só percebemos o exterior das coisas e só definimos as suas relações externas e passageiras sem podermos entrar na sua natureza. Por exemplo, ¿que nos ensina a lei de conservação da energia sôbre a estrutura íntima dos corpos que ela rège e como nos persuadimos de que ela lhes é essencialmente inerente, que entra na sua primeira constituição e que a ela estão sempre sujeitos? O que é verdade é que as coisas podiam ou não ser ou ter entre si relações muito diferentes daquelas que lhes atribuimos. Contra a Necessidade, considerada por um século pedante, como o foi o século XIX, como uma realidade indiscutível, Boutroux levantou o edifício da filosofia da Contingência, que hoje domina toda a sciência experimental e toda a filosofia. Ao determinismo estreito, que proclama a morte da teologia ao mesmo tempo que nos impunha, sem bases, sem provas, uma metafísica das matéria, Boutroux impôs a sentença irrevogável de ter de ser considerado como um opressor. O determinismo prendia e mutilava o homem, Boutroux liberta-o e restitue-o inteiro à liberdade da expansão espiritual. Compreende-se assim que haja na filosofia de Boutroux uma interpretação nova do universo - nova para o pedantismo scientífico do século findo - em que a arte, a moral, a religião, numa palavra todas as actividades espirituais, que o cálculo não pode exprimir, ocupam um lugar tão nobre como a sciência. A sciência mede, pesa, enumera: as suas leis exprimem-se em números. Ensina-nos sobre a quantidade; mas desconhece a qualidade. ¿Que informes nos dá um aparelho registrador das vibrações nervosas sobre o talento ou génio do artista? ¿O valor duma obra poderá ser fornecido pelo número dos seus leitores? ¿Onde existe a balança capaz de pesar o acto virtuoso? ¿E excluiremos nós dos nossos estudos, da nossa observação, da nossa análise, todos êsses imponderáveis que, embora fujam às precisões dos instrumentos de medida, são os mais fortes agentes de acção do mundo moral e material? Ah! é que não existe só a sciência, não existe só o campo limitado que a sciência abrange. Existe também a filosofia que tem precisamente por objecto uma realidade, uma realidade, sim, e não uma abstracção - uma realidade mais larga, mais móvel, o próprio e grande mundo - onde reina a contingência. A filosofia estende-se tão longe como a escala dos sêres, casa-se com todas as suas formas variáveis e diversas, em vez de as pretender reduzir aos limites rígidos dum determinismo que não existe nem nos factos, nem no pensamento. O espírito humano é solicitado por duas tendências que Rafael esboçou num dos seus frescos imortais do Vaticano: a Escola de Atenas. Aí, emquanto Platão designa com o dedo as regiões do sublime, Aristóteles estende a mão sobre a natureza num gesto de posse. Para o scientista, Platão e Aristóteles excluem-se. É uma mutilação e um crime. Para Boutroux completam-se. Libertou ela o espírito dos liames em que um materialismo audacioso tinha imobilizado o pensamento; restituiu à criatura a autonomia que o determinismo lhe roubara e fez entrar a ideia de Deus no próprio âmago das preocupações do pensamento contemporâneo. As audácias do scientismo desapareceram, e assim vêmo-lo hoje menos negativo, menos exclusivo, menos autoritário. Restituindo à filosofia o homem inteiro, Boutroux acabou ainda com o injusto e estreito desdém de certos sábios pela actividade moral e religiosa do pensamento. Se quisermos exprimir, em poucas palavras, a obra do grande filósofo que o mundo latino acaba de perder, poderemos dizer que Boutroux demoliu o mecanismo scientífico, restaurou a liberdade moral e reabriu o caminho ao idealismo religioso. E se não é esta a vereda por onde caminha o pensamento dentro da minha pátria, direi que os meus compatriotas vivem ainda as ilusões parvas e mortíferas dos pedantes de há cincoenta anos. (1) Ha uns nove anos combati estas tendências mecanistas da sciência numa centena de páginas de « A mentalidade dos livres pensadores portugueses». | |
dc.title | “Émile Boutroux” | |
dc.type | artigo de imprensa |