“Ilha da Fortuna”
dc.contributor.author | Silva, Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da | |
dc.date.accessioned | 2024-04-19T10:04:02Z | |
dc.date.available | 2024-04-19T10:04:02Z | |
dc.date.issued | 1925-02-15 | |
dc.description.abstract | Relato de viagem onde o autor utiliza o anglicismo "leaders". | |
dc.description.authorDate | 1901-1978 | |
dc.description.printing_name | Ângelo César | |
dc.description.printing_name | Afonso Duarte | |
dc.description.printing_name | Agostinho Jorge | |
dc.description.printing_name | Alberto de Utra Teles Machado | |
dc.description.printing_name | António de Sousa Augusto Telo | |
dc.description.printing_name | Branquinho da Fonseca | |
dc.description.printing_name | José de Campos de Figueiredo | |
dc.description.printing_name | Vitorino Nemésio | |
dc.format.extent | 5 | |
dc.identifier.uri | https://cetapsrepository.letras.up.pt/id/cetaps/114463 | |
dc.language.iso | por | |
dc.publisher | Gráfica Conimbricense, Limitada | |
dc.publisher.city | Coimbra | |
dc.relation.ispartof | Tríptico | |
dc.relation.ispartofvolume | 7 | |
dc.researcher | Marques, Gonçalo | |
dc.rights | metadata only access | |
dc.source.place | BN J. 3425//4 M | |
dc.subject | Anglicismos | |
dc.text | ILHA DA FORTUNA Dois longos sóis no mar são já passados que vogamos, no Garajau de lento baloiço triste, em cata da Ilha Primária ou das Donzelas. Um portulano medieval a traz sob êste signo. Insula Columbi, ou da Garça de colo real formoso; Insula Capracia ou da cabrita úbere e montesa; ao fundo, Insula di Corvi Marini, esboçadas na traça da pinacoteca de bordo são como sombras deleitosas, rastos de aves de bico dentirrostro. Mas, trabalhados, os dias vão penosos, correm as horas no páteo do mar como nereidas e, pic, pic, nas cordas que a vaga faz erguendo-se, as toninhas cabritam. O mar é o pasmaceiro mais pasmado e, abaulado em seu regular movimento, debaixo do céu, semelha um cérebro de vastos pensamentos. Ás vezes, do cesto da gávea abandonado, um rápax voa, explora em altitude. E seu olho redondo regressa estático da viva luz difusa, leitosa das nuvens madreporárias que escorrem. Meio dia batido na sineta de bordo, por toques duplicados, estou na ponte e o capitão do barco. Pêra ruça e cofiada, maçãs do rosto vermelhas como camoesas maduras, êle é o oráculo da armada que só tem capitânea. Vamos muitas pessoas. Embarcaram os cavalheiros vestidos da lã dos merinos, as madamas de farta seda colada aos peitos e às ancas, como os sábios de barba veneranda e os cansados, esmorecidos jogadores de Mónaco. Em meia nau subiram criados à tolda com almoços frugais, queijos da serra e os amanteigados flamengos, dois gomos da desenjoativa laranja e um hemisfério do cítrico frutinho. E inclinados, tenteando o disco, caixeiros de mostras da Covilhã jogam o burro. A civilização da Europa estava mesquinha e caduca. Os ódios à sôlta eram como lobos vorazes mamando na mãe romana, não como Rómulo, como Remo os fundadores da cidade, mas como parasitas derradeiros da velha cidadania. De-balde os povos esperaram que breve, de Leninegrado, viesse o resgate requerido. Só o mal, pegando como silva, instalava as mais retorcidas raízes para lá dos mais baixos nateiros. E sob a forma multíplice de dojo, ardil ridente ou negaça, derrubava as raras figuras de asceta, sábio ou letrado em busca da forma arqui-perfeita. Os casinos e os bordéis alastravam-se, e não contentes dos mais pacatos burgos, abriam sucursais pelas aldeias serranas, rijas do exemplo austero dos antigos; - a ponto que, roídos de miséria, os leaders sociais passaram a porteiros e contratadores de teatro. Resolvemos pois, perto de mil portugueses, tentar no Mar do Sagaço as Ilhas da Fortuna. Um conselho se reüniu pressuroso para fretar galeão. Resolveu-se passar à vida verdadeira, sem sinal, nem diferença hierárquica. Mas os batoteiros teimaram em levar no bôlso algumas fichas e os caixeiros em trescalar a opopónax. Grandes senhoras puseram pó de arroz e encomendaram de Paris bisalhos. Banqueiros trouxeram as amantes em reservada cabine. E os papos-secos não abandonaram os monóculos nem os sapatos ponteagudos, com ralador na biqueira. Nas longas horas de bordo, os sediços costumes burgueses entretêm os viajantes: joga-se, pedem-se refrescos gelados; um casalinho de fresco maridado rô-rôla contra a amura. Cadeiras de lona atravancam as passagens estreitas, e nelas, recostadas com negligente modo, meninas erguem os braços à cabeça. (Bela como és, minha filha, e de corpo subtil na malha roxa que vestes, suponho-te uma alforreca em sêco, vivo presente de El-Rei Mar...) Murmurado isto comigo, a noite surpreende o barco, encapuchada vem de bruxaria e, sem estrêlas, profunda a todo âmbito, é um emplastro de breu no mar Oceano. - Boa noite! - desci da ponte onde passei a tarde, ao pé do capitão, que agora cachimba o seu fastio, rufando nas vidraças. Sente-se ranger o correntão do leme, que segue na sua calha, recua, avança de novo e devagar, oleado e grosso. Dou uma volta ao convés. Provida de dois êmbolos, vê-se a máquina trocá-los no labor, e parece uma máquina volante de costura pespontando a água salsa. Se houvesse lua, ver-se-ia a cauda espumosa e a sombra do conta-milhas; seria o mar um lençol. Mas não. Emquanto desço ao camarote, desrolho os pés sacando as botas, dependuro o casaco nos varandins do beliche, um novelo de escuridão doba que doba e um ventozinho sêco gira-gira. Vuuu… Canta na mastreação, nos ventiladores que são como flores de jarro. Um pouco mais bufão apagaria Santelmo. E gorgolante, progressivamente voluptuosa, a água a bombordo - o meu bordo - afoga tôda a vigia. Vamos experimentar a moleza da cama. Bem... Sòmente o cobertor me deixa os pés de fora. Ennogo-me contra o frio, mas a porta bateu, ergui-me e refechei-a. Só agora, de papo para o ar, considero a proximidade da terra afortunada aonde pus meu desejo. Lá, dizem, corre o tempo mais doce que um favo de mel cantado por Lucrécio. A vida é natural, e branda e boa. Os corações são amplos e perfeitos. E a paz, senhora de àsa branca, abraça as coisas todas sob o frouxel da penugem, feita da luz mais fofa, do mais meigo calor e da mais santa graça. Vu, vu... ¡Ah, maroto de vento, que me atrazas a marcha! De manhã. Aromas de cedro, de pitósporo, de faia, impregnam os pulmões à gente; que regalo... Nasceu o sol com rubor de donzela e subiu, deitou no azul um pingo de oiro esplêndido. Eu sonho. E já no horizonte se desenhou a terra. Correm de seus tugúrios as donzelas vaidosas, as rebarbativas damas, os banqueiros de bota ladroa, de borracha. Afluem maquinistas que o óleo vil besuntou, cozinheiros trazendo na mão couves tronchas, os cora-mastros com véstia de ganga escura. E todos, varados de surpresa, emquanto a sereia larga o seu pio de espanto, vêem, ao fundo, enorme, ascendendo em pluvial de rosas a grande ilha de que Platão falava, e nela a Civitas Dei formidanda. Uma abada de pétalas e folhas cai, tomba sôbre os maldosos de nós: é a luz da aurora. Mas já ao esplendor subitâneo, sucedeu oiro, oiro vertido, pluriforme e ofuscamente, sucedeu a luz que a todos esclarece e iguala dadivosa. Não mais, em velhas cidades corroídas, sombra de hostil palácio a dar alento à humidade, e nesta, sobre cacos de barros, sobras de rancho podre aos pobres tristes. Nunca mais a betesga e nela aberta a porta onde a pobrinha, necessitada rameira, debruça os seios e espera. Para longe o verde tapete onde os cegos, os maus de entendimento, lançam o pão das filhas em rodelas. E prisões de revoltados justos, de ladrões sem roubar, de matadores que apenas deram vida, nunca mais junto às muralhas dos fortes, ao pé das tôrres feias, com negras varas de que fogem pombas. Primaria sive puellarum, a ilha da Fortuna abriu seu seio a nós todos. 1923. VITORINO NEMÉSIO. | |
dc.title | “Ilha da Fortuna” | |
dc.type | artigo de imprensa |