“Um Pobre Homem”

dc.contributor.authorSilva, Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da
dc.date.accessioned2024-04-19T10:04:02Z
dc.date.available2024-04-19T10:04:02Z
dc.date.issued1925-04-20
dc.description.abstractAo apresentar um excerto do romance O Ilhéu Venâncio (c.1925) é possível distinguir, para além do anglicismo troley, uma referência ao Parque Eduardo VII, anterior Parque da Liberdade que, após uma visita de estado do monarca inglês, com vista a firmar as relações anglo-portuguesas fragilizadas após o Ultimato britânico de 1890, terá adoptado, em 1903, o nome de Parque Eduardo VII de Inglaterra, caracterizado pela ampla variedade de espécies vegetais.
dc.description.authorDate1901-1978
dc.description.printing_nameÂngelo César
dc.description.printing_nameAfonso Duarte
dc.description.printing_nameAgostinho Jorge
dc.description.printing_nameAlberto de Utra Teles Machado
dc.description.printing_nameAntónio de Sousa Augusto Telo
dc.description.printing_nameBranquinho da Fonseca
dc.description.printing_nameJosé de Campos de Figueiredo
dc.description.printing_nameVitorino Nemésio
dc.format.extent4
dc.format.extent6
dc.identifier.urihttps://cetapsrepository.letras.up.pt/id/cetaps/114462
dc.language.isopor
dc.publisherGráfica Conimbricense, Limitada
dc.publisher.cityCoimbra
dc.relation.ispartofTríptico
dc.relation.ispartofvolume9
dc.researcherMarques, Gonçalo
dc.rightsmetadata only access
dc.source.placeBN J. 3425//4 M
dc.subjectLiteratura
dc.textUM POBRE HOMEM Ao segundo lance da escada, que atingimos, tomei-lhe a mão e beijei-lha: então Serafina teve a extasiada postura que eu já conhecia nela, agravada, com mais cabeça atrás e menos receio do vulgo. Qual era o vulgo, ali? Reparei bem, sem propósito: era o gato Suspiro com a cauda enroscada, os verdes olhos abertos entre as triformes alças de suas patuscas orelhinhas. Miou. No saguão, em baixo, havia só negror; nenhuma flecha de luz subia do couto da porteira. Imbecilmente gaguejei então. Tremia todo, e a-pesar-de que Serafina esperava heròicamente o meu devido porte, fui mazombo e canhoto. - Acredite, Venâncio - disse ela recorrendo à grande peroração - que há momentos na vida...- olhos em alvo - momentos em que o separar-me de alguém equivale a partir-me... - gesto da vela, que derramava cera em tornos como que a arrancar do coração uma das plantas mais amadas. Neste ponto, um pouco se quebrava a sua linha de êxtase; emendava a mão. Também a chama da vela, que afrouxara em concomitante desmaio, agora recobrava a sua linha esguia de luz ab uno ad omnes... - Isto sucede-me - rematou - muito indistintamente, com as pessoas superiores de coração e de espírito que me entendem. Por exemplo, consigo… - Mudou de expressão, de novo para o êxtase, dizendo: -E tanto, tanto lhe queria falar.. Coisas práticas... Uma maneira, talvez, de nos aborrecermos menos.... Cerrou a minha mão na dela, contra o peito, então esticado sob a magenta blusinha; e eu, desastrado, não tive ali ao menos o viril olhar requerido, os braços fortes para o amplexo atalhador. Estava ali e não estava. Eu, verdadeiramente eu, andava por fora, no peristilo da Academia, braço dado a um retórico que me arredondava os períodos da declaração negregada. Amo-a -pensava então dizer-lhe - como à exquisita flor que me sorriu no deserto, quando... E aqui, a imaginação tropeçava-me para compor o Sahara, os ventos ásperos levando as areias às dobras como trigo em joeira. Mais quê? Mais quê? - persistia o literato, impertinente, aonde devia estar o homem. Como trigo em joeira, mais quê? Ainda minha mão estava na dela ao pé do seio, e agora entendo: tinha a impressão que se goza ao tocar num papo de rolinha, sentia ali céu e inferno, um céu riscado de vergões ao rubro dum grande torpor carnal. Muito paciente foi Serafina, que prolongou a posição perigosa, deixou ficar cerradas as pálpebras translúcidas muito tempo, o bastante a pintarem-nos. Até que, já eu achara o oásis bem composto, com ela em figura de egípcia, longe dali, no maldito deserto da literatura pacóvia, soltou os seus dedos nervosos dos meus lorpas: - Adeus... Foi um adeus reticente e com uma ponta de ironia. Trôpego e sempre pateta, desci os degraus e voltei-me para ela, já na porta: - Adeus, Serafina. E com calcanhado passo ela subiu nervosa, com-certeza irritada. Bateu o portão no trinco doce, Yale; ouvi um gemido que devia vir da porteira acordada; e logo o escuro da noite me bebeu, me somou ao seu zero: penetrei no escuro e fiz parte dêle tôda a noite. Eram duas e tanto da madrugada quando os meus passos batiam dali, daquela casa muito fofa na noite de inverno muito dura, pela rua de X a fora. Dobrei a Avenida da República que estava quási deserta, - caía uma neblina velhaca e muito mórbida, envolvendo os globos da luz eléctrica em halos roxos. E frio! No passeio contrário ao que eu seguia, dois polícias batiam as chancas e conversavam curvados, mãos nos bolsos; passou um tresnoitado com o sobretudo ao ombro, luvas de papo-sêco, lançando a botina com um sonido arripiante, que parecia desperto em mim; e, cantando metàlicamente nas agulhas, o último carro do Arco do Cego voltou à Praça Saldanha. Corri sôbre êle quanto pude e ainda logrei pôr a mão no apoio da plataforma, mas o carro ia a 9. Acompanhei-o de rastos; por fim, estatelei-me. Não foi tão curto o instante em que fiquei posternado, que me não desse tempo a ouvir, ainda de borco na lama, a voz dum dos polícias que perto dali bocejavam: -Oh 50, olha que se chapou um tipo além, não viste? Dirigiram-se a mim pressurosos mas já eu estava de pé. Sacudi-me. Saíra daquela aflição rasgado na joelheira e com um quadril a doer, o chapéu arranjara um adôrno de lama e estava todo amolgado. Mas lá fui deslisando. E então, a passo cavo pelas avenidas desertas, liguei as quedas ambas num só fio, a minha falta de arrôjo e de ginástica enriçando-me tudo na vida. Pouco tempo durou a filosofia, contudo. Gradualmente, ao sabor duma fatal continuïdade, o meu discernimento foi-se delindo, apagando, como uma chama de bugia quásí sem cera alguma. Pobre razão, a minha! Ela era e é a enteada do meu lar, que só amima as damas fúteis dos sentidos, femininos a receber o universo sob as formas que enganam: formas vaporosas de som, coristas da minha ópera; garridas formas de côr, mulheres do meu harém; e essa multidão pasmosa e inominável de formas que pelo tacto e o paladar apercebo, degluto à doida e sem medida. Agora, ao comprido das ruas desertas, seguia agarrado por uma dor incrível que vinha não sei de aonde - de dentro de mim com-certeza - e que, em vez de mil cabeças, tinha mil garras ou mais para tôda sorte de apertos. Angustiosa, como a impressão derivada do subitâneo mergulho dum tifoso em água fria, subia a galope em mim e me estreitava a garganta. Quente como um alto forno, escaldava-me. E depois, nem fria nem quente, apenas morna dor, mágoa indizível e esparsa, entorpecia-me os membros e fibrilava em meu peito. Eram então as altas horas veras. Dormia a cidade tôda. Tac, tac, nas calçadas brunidas, os meus passos acordavam um som de campa fria; repercutiam-se, e seus ecos marchavam atrás de mim como ordenanças. Mas não eram respostas humildes de uma sonora marcha de triunfo, por trilho doce ou pelo vencido trilho de Átila, - sim responsório condoído do transe da minha alma. Ia ali morta a esperança. E ao teor da minha sombra nos muros, foi o espírito correndo a minha história, desde que me arrancara do calmo lar ilhéu e viera à fortuna, curioso do mundo e dos outros. Fôra uma longa derrota, de que não chegara a ancorar. Lá longe, ao pé do mar, ainda no estaleiro, a barca da minha sorte ouvira as vozes de bom chamo que sopram de áureas cornetas. O que elas diziam então... Depois, mundos e fundos de encanto em nada se verteram, ou, pior que nada, haviam fincado o pé no jornal do José Nunes, no ram-ram de Lisboa, e nos gritos agudos que de manhã a rua da Atalaia me apresentava aos ouvidos. Com tudo isto e os autos eu tinha chegado à Rotunda. Á direita, o Parque Eduardo VII avultava sem defenir o relêvo; era um capuz de treva sobre a Penitenciária. Lá estava o Marquês entaipado, como um pião amoijado em catassola enorme. A Avenida era uma esticada fita métrica de que a Rotunda era a caixa. E as tílias nos talhões mimosos abriam as ramas à chuva, uma chuva esfarelada e fria como granísolos tombando. Vinham agora os varredores subindo. Como o outono já desse a conta dos dias ao inverno, raras fôlhas, daquelas cobreadas, nostálgicas que atoram, ou de um amarelo de oca malhadas de muito azebre, jaziam molhadas nas valetas a obturar alguns boeiros. Enrugadas de lama, as bermas da Avenida não tinham que varrer. Mas, nos passeios acamados de fino areúsco, lá raspavam os gilbarbeiros da Câmara, providos de cabos enormes montando os varredores. Ás vezes os almeidas paravam : era um tamanco que lhes fugia do pé ou um apetite de fumaça que vinha: sacavam dos bolsos dos coletes alguma prisca acendível e, em concha bivalva as mãos ambas, eu via arder os fósforos. Para cima, então, depois de meia volta rapada pelos Restauradores, um Renauld macio arfava e deslizava. Vinha aos solavancos e aspergiu-me de lameiro. Mais esta! Reparei melhor na minha fatiota: era uma andaina verde, que nos fundilhos parecia de lustrina, comida tôda a penugem dos fios, e agora rôta nas cócoras dos joelhos e marchetada de lostras. Vinha molhado e sentia as pernas moídas; um ferro no coração apertava. Todavia, aquele do automóvel repimpava-se com uma peliça rica, um fato de bom merino, - que bem o vi à brasa do charuto, gordo como um barril. Subindo agora a Calçada da Glória empinada, espécie de tabuleiro a escorrer, eu meditava nos agravos sociais que a pé firme sofria - a pé firme, quando a pressa de trepar a um eléctrico me não chapava nas ruas… ¿Quem seria, afinal, o homem do Renauld? Lá estavam, a meio da calçada, os dois ascensores com seus babetes côr de vinho e os seus números amarelos. Os engates mergulhavam no solo por complicado maquinismo. Daí... Podia ser muito bem um accionista, aquele homem, da Companhia Carris de Ferro de Lisboa. Vinha talvez do bródio, dum clube, de ao pé de mulheres magníficas. E então, por um dos lestos modos de explicar-me ingènuamente os grandes porquês das coisas, a minha imaginação desenrolou a pitoresca fita. O janota, em princípio, tinha conqüibos nulos; era um misero. Mas Lisboa, a marmórea, andava farta do chora e êle era dono disto: uma rêde enorme de calhas pelas ruas e, faïscantes, milhares de cubos que deslisavam sôbre elas. ¡ Engenhos mais patuscos! Á frente de cada, um tipo magro esticava-se e tinha uma mão num manipulo. Outro, entre filas de assentos, usava uma mala a tiracolo, um alicate esmaltado. E, em certos, um gordo sujeito entrava, com um boné estrelado, -um boné estrelado e outro alicate. O figurão do automóvel tinha-os a seu talante em virtude dum pacto firme; e, por isso, os engraçados engenhos da vertigem, engendrados para levar depressa os homens, só levavam os homens depressa dando cada um seu tanto. Vi tudo. Com tais premissas, o figurão me surgiu um poderoso feiticeiro, com uma varinha de condão às ordens. Era o troley. Havia pois uma fêmea que era esquiva, e por olhares, passinhos fidalgos o tentava? Em tal noite o Moet et Chandon espirraria capitoso algures? Uma nova marca de autos surgira famosa na praça? Bem. O dinheiro vinha à uma. Centenas de braços nas paragens erguiam meios-tostões, milhões de tostões de papel. Os carros, que vinham na tôda, estacavam. E cheios os lugares da multidão mais diversa, novos braços se erguiam, vozes danadas berravam: -Pare! Pare com isso! Pare! Todos, porém, procediam, em sua ideia, como que sob o jugo de necessidade impe riosa, dêles próprios. Só eu corria vãmente atrás dum carro, até me estatelar, reclamando: - Mais um, sr. guarda-freio. Está aqui um passageiro que quere contribuir para o gôzo do patronato, para as suas mulheres e automóveis. Sou jornalista. Venâncio Gomes, repórter da Terra, com passe da polícia... Mas a campainha do eléctrico retinia e o carro bordava uma curva, cantando pressuroso. E entretanto, os meios-tostões em punho, cadetes, moços de fretes e varinas regougavam, involuntários contribuintes das grandes orchatas alheias: - Lá tenho de ir a butes! - Que espiga! - Uma destas! - O último carro do Dàfundo! Perder o último carro do Dàfundo! E, filosófico desta exquisita seita, dei eu fundo na travessa da Cara, em cima, sôbre S. Pedro de Alcântara com suas luzes foscas. - Trago aqui uma caixa, um caixão! - proclamou de súbito sôbre mim um vulto magro, de sob um casaco puído. Era o Sampaio Conde, que àquela hora, meio alumbrado de decilitros brancos e pitoresco por isso, vinha da rua da Emenda, da redacção da Terra. - Mas não a dou ao Carvalho - prosseguiu - que não agradece estas coisas. - Aqui para nós, amigo Venâncio, vou mas é escarrá-la ao Notícias, que pode render. Não achas? - O quê? O que é que tu descobriste, homem de Deus? E Sampaio Conde sacou do bôlso uma tira, que soletrou dêste gôsto: - Consta que a Companhia Carris vai aumentar as tarifas. Eu disse: - Ora sebo! - e segui. Na rua da Atalaia bati palmas com fôrça e o guarda noturno veio : - Já vai! Desembocara dum saguão pertinho, e o rop-rop do seu capotão de oleado era o único ruído da rua. Entrei no meu quarto abafado com moleza, e comecei a despir-me. Êsse quarto, forrado de vermelho, mobilava-o um guardo-fato de casquinha, um toucador e uma banca. A cama, de boa amplidão e de moleza perfeita, andava sempre com frescas roupas alvas; e tudo isto, inventariado de relance por mim, ao recolher, era motivo para lhe dar ressalto em face às magras posses de que eu dispunha então. Nessa noite, porém, pensei pouco: abri distraïdamente os lençóis e, moído de corpo, deitei-me. Tinha uma vela ao lado, quási gasta. Pela janela da rua da Atalaia, rasgada e ampla, entrava bùciamente um coalho de sombra aloirada, vaga, como se fôsse composta do atrito da dor nos prédios. Tudo calado. Apaguei a luz, virei-me, ouvi o carroção do lixo, que passava; uma vassoira rapou... E então o sono, a quem em menino ouvira chamar José Piqueno, pareceu-me realmente qualquer coisa de humano, de pessoal, que se acercava. Um velho gnomo, imundo de percorrer o universo a cerrar olhos, não apresentaria aos surdos sentidos do meu corpo, já meio adormentados, aquele aspecto de coisa mole e suja que me vinha aquietar. De resto, esta tendência a personalizar desgostos era já velha em mim. Criara-me no mêdo vago a duendes, e pelas ruelas de Vilório, à noite, via marchar fantasmas. Estas sombrias entidades formavam a meus olhos uma segunda criação: nasciam de mim, como dum paúl exalações nevoentas, côr de chumbo e de cobre; mas eu contemplava-as em plano de objectividade fria: racional aparentemente; no fundo, porém, trabalhada por um delírio vago e nervoso. Meus fracos nervos, assim, iam alimentando com um mundo mau de espectros a vida vã do meu cérebro. Ria-me dêstes títeres, mas êles também se riam de mim, na sombra. Nesse dia, os meus desencantos com Serafina, que não eram erros de que a razão desse conta mas só sentimentos gastos em vão e em fumo, convocavam o meu exército de obscuridades. E na modorra da madrugada, naquele sono que encontrava o meu corpo todo pisado e dorido, senti então o barbaçudo velho, guarda do esquecimento. Ali, no Bairro Alto, estava à beira do Letes. Aturdido, porém, por tão vária sorte de quedas, o meu dormir não era bronco e amnésico: era um caos posterior à formação do universo, o fundeadoiro de mil esbarrondamentos. As mãos do papão do sono, esfarelavam-se nêle cem castelos. Deram as quatro da manhã, as cinco, e eu ouvia-as bater em minha cabeça com o martelo da vanidade: eram projecções alucinatórias do eu que revertiam mais loucas à origem. Assim dormi nessa noite. Ao vir da manhã, o pesadelo foi cedendo a um desgôsto mais lúcido, apercebido da minha presença na rua da Rosa, 100. Começavam no ar os pregões das varinas madrugadoras, o do homem magro das colheres de estanho e o do Piroliroli; passavam na minha rua as primeiras carroças brutas. E eu advinhava entre os vozeiros crus o regougo das meretrizes, por trás dos lençóis brancos, com retratos de santas nas quatro paredes sujas. Acordei então e chorei. Uma mágua absurda tomara conta de mim e mostrava-me a dor do mundo: sonhos bons, Serafininhas de casto olhar propício - oh poeira vã que moía tanto os olhos... Surpreendi-me a chamar em meiga surdina: - Mãe... E pareceu-me que ouvia esta doce voz calmante: - Deixa lá... Estou aqui. (Do romance inédito, O Ilhéu Venâncio). VITORINO NEMÉSIO.
dc.title“Um Pobre Homem”
dc.typeartigo de imprensa

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