“O Pranto das Reses Bravas”
dc.contributor.author | Silva, Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da | |
dc.date.accessioned | 2024-04-19T10:04:02Z | |
dc.date.available | 2024-04-19T10:04:02Z | |
dc.date.issued | 1924-11-15 | |
dc.description.abstract | Conto sobre a vida rural que faz uso de personagens e situações que evocam as actividades do campo e o contacto, nas suas mais diversas formas – por vezes brutas e rudes –, com os animais. Aqui, o autor refere a libra, moeda oficial do Reino Unido, e alude a duas raças caninas que estariam presentes neste cenário rural: os “Setters”, típicos cães de caça, que têm grande presença na Inglaterra e na Irlanda; e os “bull-dogs”, de origem inglesa, uma raça ligada ao confronto com touros. | |
dc.description.authorDate | 1901-1978 | |
dc.description.printing_name | ngelo César | |
dc.description.printing_name | Afonso Duarte | |
dc.description.printing_name | Agostinho Jorge | |
dc.description.printing_name | Alberto de Utra Teles Machado | |
dc.description.printing_name | António de Sousa Augusto Telo | |
dc.description.printing_name | Branquinho da Fonseca | |
dc.description.printing_name | José de Campos de Figueiredo | |
dc.description.printing_name | Vitorino Nemésio | |
dc.format.extent | 2 | |
dc.format.extent | 6 | |
dc.identifier.uri | https://cetapsrepository.letras.up.pt/id/cetaps/114460 | |
dc.language.iso | por | |
dc.publisher | Gráfica Conimbricense, Limitada | |
dc.publisher.city | Coimbra | |
dc.relation.ispartof | Tríptico | |
dc.relation.ispartofvolume | 4 | |
dc.researcher | Marques, Gonçalo | |
dc.rights | metadata only access | |
dc.source.place | BN J. 3425//4 M | |
dc.subject | Natureza | |
dc.subject | Animais | |
dc.subject | Vida rural | |
dc.text | O PRANTO DAS RESES BRAVAS Tôu, tôu.. Tch... Eh cão! O Chorica gritava junto à parede do mato, fazia um sol de fogo e até as lages escaldavam. Meio dia. Debruçado, o pastor suava em bica e punha a mão no sobrôlho: calça grosseira com vira, pé rapado, e o branco camisão com as letras do nome bordadas. Esteve um bocado a pesquisar, por entre as faias verdes; disse outra vez: - Eh cão! - e duma clareira surgiu um cachorro ofegante, com babas à ilharga da boca. Tinha o pêlo a modo côr-de-rato, com várias partes mais claras, fazendo um redoiço à lombeira. Corpanzil de vulto, o dêle era animado e retorcido ao estacar, voluptuoso na finta das sonecas, junto às soletas das portas, quando, fincado nas patas traseiras, espreguiçava as da frente, abrindo os dedos. Cortaram-lhe as orelhas, em piqueno, num banco de carpinteiro, como quem adelgaça uma tramela; o rabo ficou num tôco que o arreliava com a mosca. Assim, se a varejeira lhe ferrava o estilete na anca, êle inclinava a cabêça, arreganhava as beiçanas, e o dente coçando era mais alvo do que cal, ou que fatias de pão de milho, novo e tenro. As patas eram sólidas e brancas, porisso o chamavam Calçado; e o olho, nem milho torrado, olhava macio e amigo, com duas borbulhas de ramela. Saltou duma moita de silva que tinha cachos de amoras, entre lenha cortada, e veio aos galões, pulou mexendo um ligadoiro e fez melguices ao dono. Chorica tomou o bordão que estava ao lado, e pôs-se a caminho. No dia seguinte havia uma tourada nas Lages, com os cornúpetos amarrados à corda pelo cachaço ou pela armadura, e êle ia apartá-los à Criação do Meio. Servia há doze anos o sr. José Francisco Airora, como pastor da rapa, e desde pequeno lidava com o gado bravo da Matela, cercava as vacas- -mestras com pedradas e enxotava as crias abanando os braços: - «Ei-uê! Chicou, bezerro!» A tourada acertara-se quando da outra corrida, à noite, numa venda. Tinha mesmo acabado de estalejar um bombão, arrecolhido o último bicho, quando, da mancheia de gente que bebia, ao balcão, vinho novo, o Felipe levantou a tigela, que ia emborcando, e com o olho esgaseado berrou à bela sociedade: - Temos que dar mas é outra! - E pra já! esforquilhou o Verdoiço, que não estava tão bebedo. Queria metê-los à bulha. Sem ser o Felipe, estava o Trabona e o José Luís da Canada, todos destombados para se encabeçarem em qualquer uma coisa. O ponto era terem dois dedos de gramática. Mas o Silva do char-à-bancs, mais sorrateiro e velhaco, pôs logo as suas dúvidas, com manha: - Vocemecês não prestam pra nada. Dou o pescoço ao talho se daqui sai coisa com coisa. O Felipe ia-se engasgando, com o focinho a pingar: - Aqui é que se quere ver quem são os homens. Cá por mim dou dois toiros e o dinheiro para a licença. - E eu dou um disse o Trabona. O José Luís dava o quarto. Jantar para os pastores, isso ficava ao cuidado do sr. Coelho, como era costume. O Verdoiço preguntou: - E para quando? Respondeu o Felipe, que para domingo. E, mal se tendo em pé, pediu ao João da venda três roqueiras, fez lume na isca de algodão e gritou, correndo à porta: - Eh rapazes, vá fogo pró ar! Viva o povo das Lages! Gente de fora chegava aos degraus que havia em frente da venda, preguntava o que era, e uns aos outros passavam senha foliona: - Toiros, domingo, rapazes! Destacou-se logo uma mordomia para o touril, aonde estava o Airora. Ia o Felipe, o Trabona e o José Luis. E combinou-se que viriam quatro guechos, não esquecendo o Brôco. De calça branca e grilhão de oiro, panamá largo à fadista, o sr. Airora praticou com o Papinha uma lasca. E o Chico Tromba, capenga, que estivera no Brasil e sabia jogar a capoeira, ameaçou o Felipe em ar de graça : - Se isso ficar em água de bacalhau, tens chocalhada à porta. Tá certo... Quando falhava uma boiada, com efeito, era costume ajuntar gente, pegar nos chocalhos das reses com coleiras, e em magote correr as canadas, vaiando, à imitação dos pastores trazendo o curro ao touril: - Ei-uê... Chicô! Brelão, brelão, brelão ! Do mato de faias, onde o Chorica roçava as silvas da cozedura, ia-se à Ribeira Seca de Cima pelas Canadas. Ele foi. O sol abrasava. Ao pé da igreja, na venda do Fura-Olho, matou o bicho com vinho e seguiu. Tinha de tomar a estrada do Carvão, para lá da Carvalha, passar a Grota do Mêdo toda verdosa de ervas e virar ao cabo de riba. Assim fez. O cão ia após êle num trotezinho, mas às vezes ficava para trás muito tempo, dando-lhe cheiro a caça, ou alçando a perna a uma parede, a aguava, logo se pondo a galope para ganhar caminho. Passaram a vila para cima, e numa ladeira, como fosse puxante, o Chórica pôs-se a andar mais pausado, o cão tomou-lhe a dianteira. Considerou-o. Há tempos, o sr. José Joaquim falara-lhe em chegar o Calçado a uma cadela malhada, prometendo uma libra e um cachorro; mas como o bicho, em verdade, era de boa estampa e sem parelha por li, Chorica fez-se grave, bailou a cabeça e mudou. de conversa. Ficavam em «vê-lo-hemos». Agora, alisando a fôlha de milho para a tocha de tabaco, depois de passá-la entre os beiços, moeu com a mão direita o picado sobre a esquerda, olhou melhor para o cão: estava velho e troquilha. Embora fôsse pé-leve, tinha já calos no assento e enrijecia de ouvido. Depois, em querendo, - molengão. Dava-lhe às vezes uma tosse feia, alongando o gasnete, ou apanhando orvalho sentia dores de barriga, buscava mèzinha nas relvas. É verdade que ainda era esperto no mato e muito arteiro no açougue, aos sábados, quando o Mudo atirava ossos e suas à canzoada. Então saía de casa cêdo, corria as ruas da vila arrebanhando outros cães, e, mal amanhecia Deus com a sua graça, rondava a porta do açougue, por baixo do sr. Eduardo. Nesses lances, à disputa de matacoses e de tripas, unhas de vaca e olhos, êle dominava a matilha engalfinhando-se bravo, com a beiçana aos tremeliques, mostrando os dentes - sarilho tamanho, às vezes, enriçamento tão bruto, que nem a pau ou correia se dava quinau de apartá-lo, ouriçadissimo de raiva. Até um dia (há que tempos!) o José da Amália atirara-lhe de regeitada um serrote: - Passa d'i, alma do diabo! Aleijara-o, e ele partiu a ganir, perna ao ar, como quem joga ao homem., Mas, tirado aquele costume metediço, poucos pitafes tinha. É verdade: - dera-lhe em tempos para beber os ovos da postura da galinha carapuçada, mas apanhou uma novena de pau que até se viu azul e não tornou ao poleiro. Também não pegava sem razão. Mas em o atiçando - ssuc... ssuc... - desabalava como um raio, e ai das canelas topadas! Emfim, bom animal, mas velhote. Mal se precatasse o Chorica. morria com alguma tamburra do bucho, esperneando; e porisso o pastor (que tinha acendido o cigarro e ageitava a cinza com o polegar direito) decidiu levá-lo no dia seguinte à vila, ao sr. José Joaquim. Botava os seus calculos: a cadela devia estar saída, com a lua. Era a Catita. Pertencia a uma estirpe clara de perdigueiros e de Setters, tinha mesmo dois terras-novas na família, e um avô envelhecera porteiro, pachorrento é gordo, já capado. Ninguém por li de roda sustentava mais cães do que o sr. José Joaquim, apontador das Obras Públicas, que sabia remédios para cavalos empachados e burros com esparvão. Mas misturava as raças ao calhar, no seu curral repleto de gamelas, onde a Mariana Pelingrina lançava fareladas e água fresca do tanque, de manhã, com uma saia vermelha. Chega, não chega à Carvalha, o Chorica, que era Manuel, da pia, e afilhado do sr. João Mendes, entrou em casa, uma casinha baixa à borda do caminho, com barras roxo-rei. Era num descampado mas calhara-lhe ali, por ser ao pé dos pastos, aonde ao lusco fusco ia ordenhar as vacas. Meteu alguma coisa na bôca e seguiu. Já o esperavam, na Criação, o filho do Xaviel, o Chico Trangola e o Garrancho. Todos de camisão e largos chapeus de Braga com forros côr-de-rosa, encieirados, vieram à estrada com os bordões de castanho e as jaquetas ao ombro. - Toca, Manuel! Já encurralámos o Fusco mas a Briosa ainda não. Anda ronceira, o estupor ! Isto disse o Xaviel, e Chico Trangola apoiou: - Suámos bagada de água! E agora vamos às sopas, Garrancho. Dá-me uma afoiçada nesse pão. Assentaram-se os três numa machuca de erva humedecida. O Teotónio do Landeira, um pisco de gente, trouxera os jantares num cesto, debaixo dum pano de lã. Tiraram a terrina, que sem a tampa expediu um fumo rescendente a couves com batatas, cheia de suor nas paredes. Em pratos de barro havia chicharros fritos. Comeram. Provas uma migalha, Chorica? - convidou o Garrancho, metendo a navalha a um pão quente. Não quero; também comi peixe sêco. Então falaram do gado. Uma vez que o Fusco estava a laço, restava cercar o Broco, mais o Roseiro e o Picardo. - Home, o Broco não! ressalvou Chico Trangola. - O patrão quere-o folgado. O Chorica explicou que as Lages exigiam o Broco; davam até mais dinheiro: - O Felipe é que é o encabeçado. - Bela bisca! - arrematou o Garrancho. Mas bom como bom para a pândega. Chico Trangola falou - «não sei se vocês se alembram.. » - daquela tarde, pelo Bodo, em que o Felipe embebedara todos e dera uma pataca a cada um. - Há dois anos. Chorica confirmou: - Tal e qual! Isso foi dar-lhe para baixo. Das primeiras coisas! O Chico perdeu uma embola amarela, até por sinal… - Isso sei eu! Custou-me quinze tostões, em casa do sr. José Lourenço, na cidade; que tive de por outra nova. E o patrão nunca o soube. Emquanto o Teotónio arrumava a loiça e dava os restos aos cães, os pastores tiraram cigarros das orelhas e fizeram fogo. O Calçado, assente nas patas, de trás, movia lento entre as mãos duas espinhas de peixe, que devorava regalado. Tinha à ilharga a cadela do Garrancho, cor de café com leite, atarracada, que lambia duas folhas de couve na borda duma tigela e olhava de revés para a Somitega. Era uma cadela de fila, especial e muito quadrada de membros, vaga parenta dos bull-dogs. Não pertencia a pastor nem lidava com reses por ofício que, farta e regalada, com dono farto de rendas, passava a vida num casinholo catita de criptoméria tenra. Mas o Chorica ou os seus homens não a empatavam, se vinha, fugida como sempre, desembaraçando-se da grossa coleira de coiro com muita ginástica de cabeça. O Chorica ou os outros arreliavam-se. Experimentavam escarmento com pauladas, moledos postos de rebôlo, mas ela ficava atrás, de espreita (a corsariona !), e pouco depois lá estava ao pé dos companheiros, com passos manhosos e leves. Era admirável de estampa, alta, com uma malha negra na maçã do rosto, e duas orelhas quebradas e flácidas, dum tecido corredio. Os olhos debruavam-se-lhe de listas, como veludo, eram claros e braseirosos de noite, e o pêlo do peito descia num amarelo-barro, que ela encardia nas ervas. Fora de horas, no casoto, dominando a quinta, ladrava com fúria às sombras e aos ruídos estranhos de roda. Se, perto, caracóis iam de muda para a horta, com a mochila às costas, e sobre folhagens caídas faziam quebrar os rebordos ou rastejavam nos pedrus- sos, a Somítega baixava a cabeçorra quadrada, o lombo virgem de afagos, transpunha cautelosa o buraco da toca e lançava um berreiro pomposo, como uma buzina, muito ao largo…O sr. Sequeira, seu dono, gostava do bicho a valer, pois lhe guardava a fazenda. - que isto, os ladrões são aos centos, mariolando, e o cheiro das abóboras novas, sobre os alpendres, é sinal certo da apanhadura de milho que atrai os larápios em Setembro. Dava-lhe gamelas cheias de lavagens, e ossos; e duma vez, que o Joaquim Tarro saltara ao curral das bananas, porque ela o mordeu nas canelas teve ração melhor, e até rosquilhas. Pobre Tarro! Escalavrado da perna e inda por cima chamado a uma polícia, os pés sangrando de testos... A cadela era uma toira, mas tinha repentes bons, ás vezes. Saltava então à esquerda e à direita, prêsa e cheia de júbilo, como uma papagaia loira em suja gaiola de lata. Tivera um tio podengo que dava o pé, ensinado; e, mais remotamente, em quinto grau talvez, uma prima como uma boa de senhora, a Mascote, que as meninas Sequeiras traziam no regaço e brincavam com fita ao pescoço. Isto de parentela, vagamente lhe contara a mãe, na palha fina de puérpera, quando a Somítega se lhe coçava às maminhas, negras como apagadeiras de capela, um pingo de cera na ponta. Nesse tempo era tenra, e a sr. Domitilia roubava-a do chôco para as meninas depois fazerem judiarias, pondo-a de pernas ao ar, a ver-se o papo côr-de-rosa... Davam-lhe até sopas de leite, e biscoitos esmiolados. Crescera. Um dia mordeu uma visita, com força. Lembrava-se. Alombara com a tranca da cozinha, puseram-lhe um açame como quem relha uma guecha e - zás! - com a tesoura de aparar as torcidas, a Domitília cortou-lhe uma mancheia de cabelo. Ficara feia, como se a tivessem pelado, e durante dias, no quarto de peneirar, lageado, fisera corropio dobrada, coçando a pele na lombeira. Bons tempos... Permitia-se então, no quarto de costura, alçar a perna inocente e inquieta, mas aí por volta do ano já a expulsavam de casa, com a bengala do senhor: - Somítega! Passa para a rua, cadela ! Ora a fedorenta! Insistente, dormia no capacho os longos sonos mornos e às vezes rapava na porta, ou batia com o cotovelo como uma visita de cerimónia. Assim enganava a criada, que a espancava com um terrível cabo de vassoira, correndo-a escada abaixo. E eram injustos, batendo-lhe. Ela tinha fidalguia pura, galgos de rei e sambernardos mansos e ascéticos. Um avo, o Roldão, jogava o pau destramente, e um dia salvara um menino à bôcal duma ribeira, como se fosse a Moisés. E quando olhava, em pequena, a óleografia enorme de S. Domingos, ladricando, estimava de ver alguêm da sua igualha com um archote na bôca, ao pé do pio varão de saia branca. Quando os pastores largaram, de bordões, para apartar os toiros, assobiaram forte pelos cães, que se lançaram de gargalhão entre as ervas, sumindo os corpos na tenrura. Pelo plaino ia a pastagem tosquiada e raras poças guardavam gota de água para um molhar de língua. Longa, a estrada era uma fita cortando-o, qual papagaio de rabo, grande e de papel, que cair fosse muito longe, estiraçado. Viam-se no descente, para algares profundos, rabadas marcando compasso binário à música mugida, as galhaduras erguendo-se como estantes de côro nas reses tôdas quietas, ou então progredindo quási em passadas de estaca, no estraçôo dos rebentos. Chorica fol o primeiro a investir com o gado. Pez um rodeio largo e sorrateiro e, agachando-se, mandou o Calçado: - Pega, cão! Pedra de funda não partiria mais célere, a rasgo direito no ar como vergasta. De entre a manada, que fora cerrando à laia de hoste, o Broco sobressaía pelo vulto redondo e bem boleado de anca. Mesmo na orelha foi que o cão se lhe filhou, e pendeu, nem chouriço. Então o Trangola avançou com a Ligeira, que fechou tenaz de boca numa canela do Broco. O cêrco era moroso e dificil, todo de ardis para as vacas e os guechos céleres. Como era grande a manada, carecia haver fino no caminhar entre ela, geito e disfarce, como quem não quere a coisa e por fim lá se vai, a encurralar os que marcou. Ora, assucedeu que nesse dia, um pouco mais atolhado, o Chorica malhou à farta nas lombeiras com o bordão de castanho. Cada cepada, que te parto, e é que partiu sem querer, pois a Briosa, afrontada na sua, largou num galope doido, e foi cair, espapaçada, à ribanceira. Todos os homens deram, um grito ao mesmo tempo, houve um toiro que berrou como com pena, e chegando-se à beira do valado, o Xaviel deu com a rês retorcida, um corno encabado entre pedras. Lançaram-se à uma os pastores para aquela banda, agarrando-se ao calhar. Vinha descendo do céu uma tarde leitosa e fina. Por sôbre a Serra da Praia, uma negra massa de nuvens botava a correr desordenada, deixava frangalhagens nos ligadoiros dos muros, e embrulhando-se na luz viva do sol que já se punha, assomava em pequenos trapos de côr: côr de laranja, côr de vinho e rajados. O gado, que cuidoso roía o pascigo farto, foi-se chegando para o valado, lasseiro. Eram bezerros dum pêlo lustroso, guechos de galho bem feito, calhamaças de vacas velhas com toiros na cola buliçosos. Primos do gado de corrida, mais longe, os bezerros mansos traziam os cestos de relhar botando escuma por fóra, e pareciam anjos do céu disfarçados naquele campo com cabazinhos de lírios. As mães, bimbalhantes de mojo, traziam à idea mulheres, com massa sovada a pingar leite. - Cerca daí... - Bás-trás! Que pena! Aquela rica estampa da Briosa, irmã do Lagarto do ti Cândio, estoirada para ali sem concerto, entre uma machuca de feito! Esperneava açodada e escorria-lhe o sangue em tornos quando o filho do Xaviel lhe pôs uma compressa de trevo na ferida maior da cabeça. Dali à morte era um passo. Que fazer? Mas o Garrancho descortinou na estrada o sr. Joãozinho que andava por li a cavalo, com quatro capotes na garupa : - Vamos chamá-lo? Pois sim. Pode ser que o Padrinho inda a salve. Escoroçoado, porém, é que o Chorica assim falou. O Trangola botou-se ao caminho e troive o homem: - Ah, sr. Joãosinho, que isto era tal qual uma pessoa ! A nossa Briosa! O padrinho do Chorica traçou o capote pelos ombros e abaixou-se. Ali à mão, para remédio, só uma gota de aguardente que trazia num frasco no bolso. Tirou-lhe a rôlha de vidro e alagou a compressa da vaca. Ainda ficava um pingo: - Bebe-o a gente. Sempre aquece... - Aquela alma é que está fria gelada, meu padrinho. Diabo do Chorica, homem como poucos, e agora a esbagoar-se de chôro que nem que mamasse ainda! Também não era dêle só, aquele poisar-se pasmado diante da rez que morria, babando-se, os grandes olhos esmorecidos como brasas com água por cima. Os outros cercavam-na também. - Pois é verdade, meu afilhado. Vai-se-te uma cabeça bem boa... - Vacas é o menos que falta, sr. João Mendes - opinou o gorgulho do Teotónio. Só o sr. João de Ornelas e o Almeira têm mais duma sebe delas ! - Carece ter com que para as mercar. - Isso é bom para o tio e para a gente - voltou o pisco ao Trangola. O sr. Airora é o home mais rico desta terra. - Pois sim - disse o Chorica. - A gente é que cria amizidade aos bichos... Calaram-se. Já havia uma muralha em redol, de galhaduras baixas, tocando umas nas outras como o Finório amolando distraïdamente as navalhas. Fios de baba luzindo, com as cores do Arco da Velha, pingavam melados e tristes. As vacas pareciam viúvas, de anôjo, e os bois davam ares a orfãozinhos que tivessem ficado ao desamparo, berrando e estendendo os focinhos. Foi apertando a manada e entristecendo. O sol pôs-se à procura da sua tumba roxa. E, já abalados os homens, no vir da noite mansa, quando as estrelas começaram lá em riba a vigiar para baixo, ainda o gado era visto de vela à vaca morta, já toda coberta do sereno. (1922). VITORINO NEMÉSIO. | |
dc.title | “O Pranto das Reses Bravas” | |
dc.type | artigo de imprensa |